Moscou.
Do lado de fora, neve.
Do lado de dentro, pecado escorrendo por taças de cristal.
Era o encerramento informal do Congresso Mundial de Investimentos Ultra-Privados.
Na prĂĄtica?
A reuniĂŁo dos homens que movem o mundo sem levantar da poltrona.
Um buffet de bilionĂĄrios, egos inflados, garrafas de R$ 80 mil e verdades guardadas a sete cifras.
Os seguranças do evento vestiam preto total e usavam ponto eletrÎnico.
As mulheres⊠eram decoraçÔes vivas.
Algumas trazidas como acompanhantes fixas.
Outras, contratadas sob demanda â com regras, papĂ©is e codinomes falsos.
âž»
Eu nĂŁo era a Ășnica mulher sozinha.
Mas era a Ășnica que sabia que estava acima do jogo.
As outras ainda tentavam agradar.
Riam forçado.
Pegavam a taça com delicadeza ensaiada.
Fingiam naturalidade num ambiente que nĂŁo aceitava amadoras.
Eu?
Fui criada no inferno.
E aprendi a desfilar entre os demĂŽnios com um salto 12.
âž»
Vestido preto com fenda lateral.
Costas nuas.
Gola alta.
Cabelos presos em um coque frouxo com algumas mechas soltas â o bastante pra parecer que ânĂŁo me esforceiâ.
Batom cor vinho.
Perfume francĂȘs com notas de couro e baunilha amarga.
Cheguei ao lado de um cliente suĂço que me pagou apenas para sorrir em silĂȘncio.
Ele precisava de uma mulher como escudo.
Queria parecer menos podre do que realmente era.
E só uma acompanhante como eu poderia fazer isso⊠sem nunca abrir a boca.
âž»
Cinco minutos dentro daquele salĂŁo e eu jĂĄ sabia tudo:
âą Quem se odeia.
âą Quem finge.
âą Quem vai transar escondido com quem.
âą Quem estĂĄ falido mas quer parecer rei.
E quem estĂĄ no controle.
âž»
Foi aĂ que eu senti.
O olhar.
Firme. Frio. Intenso. NĂŁo sexual. Predador.
Virei de leve.
NĂŁo com medo.
Mas com estratégia.
E lĂĄ estava ele.
O Ășnico homem no salĂŁo que nĂŁo sorria.
NĂŁo fingia.
Não implorava por validação.
Terno sob medida.
Cabelo arrumado com descuido proposital.
RelĂłgio clĂĄssico â caro, mas nada exibido.
E olhos que diziam: âeu compro tudo⊠menos vocĂȘ.â
Aquilo nĂŁo me incomodou.
Me instigou.
âž»
Cruzei a sala com elegĂąncia clĂnica.
Deslizei por entre mesas, risadas falsas e brindes sem sentido.
Passei por ele.
NĂŁo encostei.
Mas deixei o cheiro.
Um rastro do meu perfume.
Uma assinatura invisĂvel no ar.
A armadilha estava montada.
âž»
Na pista de dança, encostei no meu cliente.
Inclinei o corpo.
Murmurei no ouvido dele:
â Tem alguĂ©m aqui que me olha como se eu fosse uma promessa que ele ainda nĂŁo comprou.
O suĂço riu.
Achou que era sobre ele.
Ele nem imaginava que jĂĄ era passado enquanto o outro me imaginava no futuro.
âž»
Fui ao banheiro.
Refiz o batom.
Soltei uma mecha do cabelo.
Ajustei a fenda do vestido.
Voltei.
E lĂĄ estava ele.
Parado. Me olhando. Sozinho. IntocĂĄvel.
NĂŁo sorriu.
NĂŁo moveu um mĂșsculo.
Mas aquele olhar?
Aquele olhar dizia: âvocĂȘ jĂĄ Ă© minha. E ainda nem percebeu.â
SĂł que ele estava errado.
Eu percebi.
E adorei.
âž»
Dei meia-volta.
Desapareci entre os convidados.
Mas deixei o olhar de volta.
Olhei por cima do ombro.
Sutil. Quase imperceptĂvel.
Mas direto como um convite.
Ele nĂŁo veio.
NĂŁo naquele momento.
Ătimo.
Homens assim nĂŁo agem com pressa.
Mas quando agem⊠nunca erram o alvo.
E dessa vez, o alvo era eu.
SĂł que ele ainda nĂŁo sabia:
eu também sou atiradora.
E jĂĄ mirei.
âž»
No final daquela noite, fui embora com o suĂço.
Mas dormi pensando no homem que nĂŁo tentou nadaâŠ
e mesmo assim, jĂĄ estava devendo tudo.