3. Olhos obscuros.

Na manhã seguinte, o clima nos corredores da Constellation Global estava diferente. Mais tenso. Os sorrisos eram curtos, os passos apressados, e até mesmo os cumprimentos formais pareciam mais frios. Isabela sentiu o peso do ambiente assim que entrou no elevador. Dois homens engravatados falavam em sussurros atrás dela.

— Vai começar pelos setores de suporte, já ouvi dizer — disse um deles.

— RH já está revisando contratos. Disseram que é uma “reestruturação estratégica”, mas todo mundo sabe o que isso quer dizer.

Isabela manteve os olhos no visor digital que subia andar por andar, tentando ignorar a sensação de que uma corda invisível estava se apertando em volta do ambiente. O elevador parou no 12º e ela saiu, seguindo direto para o armário de material. Ainda nem havia calçado as luvas quando Marina a abordou com um semblante preocupado.

— Fica de olho nos avisos internos, tá? Tem coisa acontecendo, e não é boa.

— Já ouvi alguns comentários — disse Isabela, puxando o carrinho de limpeza.

— Estão dizendo que vão cortar o pessoal da terceirizada também. Ninguém é intocável aqui.

Aquela frase ficou reverberando na mente de Isabela enquanto ela limpava a copa do 13º andar. O pano em sua mão repetia os mesmos movimentos, mas seus pensamentos estavam longe, tentando calcular possibilidades. Mal havia começado, e já falavam em cortes?

Seguiu seu turno com mais silêncio que o habitual. Até o barista, sempre falante, estava contido naquela manhã. Servia cafés como quem anda sobre cacos de vidro.

Ao final da manhã, foi chamada para realizar a limpeza da copa do 15º andar — a primeira vez que subia oficialmente até ali. Apertou o crachá no peito com força e tentou controlar a ansiedade. O elevador exclusivo a levou direto ao topo, onde as portas se abriram com um chiado suave para revelar um ambiente silencioso e quase intimidador.

O 15º andar era diferente de tudo o que havia visto. A decoração era minimalista, elegante, com tons neutros e plantas cuidadosamente posicionadas em vasos de mármore. As janelas panorâmicas ofereciam uma vista da cidade inteira, como se aquele andar pairasse acima de tudo e todos.

Entrou na copa reservada. Havia pouca bagunça — apenas duas xícaras sujas e algumas migalhas. Limpou tudo rapidamente e foi higienizar a mesa de reuniões logo ao lado. Ao passar pela porta de vidro semiaberta, ouviu vozes baixas vindo do corredor atrás da parede opaca.

— Não podemos manter todas as áreas como estão. O investimento em IA exige corte de pessoal — dizia uma voz masculina, firme.

— A parte operacional vai sentir primeiro. Faxina, manutenção, apoio administrativo… — respondeu outra voz, mais baixa, com um tom quase mecânico.

Isabela parou os movimentos por um instante. Estavam falando da limpeza? De cortes?

— Já temos os números. A ordem vem de cima. É hora de reduzir custos, mesmo que doa.

As vozes se afastaram aos poucos, mas as palavras ecoaram como trovões em sua mente. Seu estômago embrulhou. A mão tremia levemente ao enxugar a mesa. Por mais que tentasse se concentrar, não conseguia afastar o pensamento: ela era descartável. Mais uma entre centenas.

Ao terminar, passou pelo corredor principal e viu Rafael Arantes atravessar uma porta de vidro, seguido de dois diretores. Seus olhos se encontraram por um breve instante. Havia algo diferente neles naquele dia — menos observador, mais fechado. Como se carregasse um peso que ainda não havia se manifestado completamente.

Na hora do almoço, Isabela estava inquieta. Não tocou na comida. Marina sentou-se ao seu lado, percebendo o silêncio pesado.

— Você ouviu alguma coisa? — perguntou, direta.

Isabela hesitou, mas assentiu com a cabeça.

— Estavam falando em reduzir custos. Cortar áreas operacionais.

Marina suspirou, levando a mão ao rosto.

— Eu sabia. Estão de olho na gente. Sempre estivemos na margem. Agora vão empurrar.

— E se eu for uma das primeiras? — sussurrou Isabela. — Mal cheguei…

— Talvez seja por isso que você fique. Ou por isso que saia primeiro. Aqui nada faz sentido. É política, estratégia, números… — disse Marina, amarga. — Mas você… você foi notada, Isa. E isso pode contar.

Isabela não respondeu. Parte dela queria acreditar que sua eficiência, seu cuidado com os detalhes e até o reconhecimento do CEO a protegeriam. Mas outra parte sabia que, em empresas daquele porte, rostos eram apenas registros no sistema. Um clique — e sumiam.

Ao retornar ao trabalho, decidiu limpar uma sala de reuniões vazia no 14º andar. Queria espairecer, afastar os pensamentos ruins. Mas ao se aproximar da janela ampla, viu algo incomum do lado de fora — refletido no vidro. Um vulto escuro no fim do corredor.

Virou-se com um leve arrepio. Nada ali. Corredor vazio, luzes fluorescentes, silêncio absoluto.

Talvez fosse cansaço. Ou paranoia.

Mas quando voltou a olhar para o vidro, o vulto ainda estava ali, parado, refletido num canto que não existia. Não se mexia. Não se dissipava.

Fechou os olhos por um instante. Ao abri-los, o reflexo havia sumido.

Voltou ao trabalho, mas aquele momento a acompanharia pelo resto do dia. Havia uma tensão no ar que não vinha só de rumores e reestruturações. Era algo mais profundo. Como se alguém — ou alguma coisa — estivesse observando tudo das sombras. Como olhos ocultos por trás dos vidros e sorrisos calculados.

Olhos obscuros, ela pensou.

Naquela noite, ao chegar em casa, não falou muito. Tomou banho e deitou-se cedo, mas não conseguiu dormir. As palavras sobre cortes voltavam em ecos. A imagem do vulto refletido… ainda estava viva em sua memória.

Fechou os olhos com força e sussurrou, como num pacto consigo mesma:

— Eu não vou sair daqui. Nem sem entender o que está acontecendo.

E no silêncio do quarto, Isabela Duarte decidiu que, custasse o que custasse, descobriria a verdade por trás das paredes de vidro da Constellation Global.

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