4. Cartas na lixeira

A quarta-feira amanheceu nublada, com nuvens pesadas pendendo sobre os espelhos de vidro da Constellation Global. O ar-condicionado circulava o ar gelado pelos corredores como se imitasse o clima do lado de fora — e talvez até o humor de quem trabalhava ali.

Isabela chegou cedo, como sempre. Atravessou o saguão com o uniforme impecável, os cabelos presos num coque apertado, a postura firme que aos poucos se tornava parte de quem ela era dentro daquele prédio. Mas por dentro, levava consigo a inquietação dos últimos dias. Os rumores sobre cortes ainda pairavam, e o estranho vulto refletido na janela na tarde anterior não saía de sua mente.

Já era rotina passar no 12º andar antes dos outros. O corredor ali ainda estava deserto, exceto por um segurança sonolento e uma recepcionista que mal levantou os olhos. Isabela empurrou o carrinho de limpeza até a copa e começou a organizar tudo com seus gestos metódicos — primeiro os armários, depois as superfícies, depois a lixeira.

Ao levantar o saco de lixo da lixeira central, percebeu que havia algo incomum ali dentro: uma folha dobrada várias vezes, presa entre embalagens de barrinhas energéticas e um copo de papel amassado. Estava relativamente limpa, o que chamou sua atenção. Curiosa, puxou-a antes de amarrar o saco.

Era um papel de bloco de anotações corporativo — timbrado com o logotipo da empresa — mas o que chamou sua atenção foi a escrita. Letra cursiva, firme, feita com caneta azul:

“Cuidado com quem acredita em você.”

Isabela ficou paralisada por um momento, os dedos apertando o papel sem perceber. Leu e releu a frase, tentando entender o que significava.

A primeira sensação foi de desconforto. Aquilo fora jogado fora, mas claramente não era lixo comum. Era um recado. Ou um aviso. Ou — o que a deixava ainda mais desconfortável — algo deixado de propósito, como uma armadilha para quem encontrasse.

Olhou ao redor, como se esperasse encontrar alguém observando. O corredor ainda estava vazio. Nenhum movimento fora da copa. Nenhum som além do zumbido discreto das lâmpadas de LED.

Dobrou o papel novamente com calma e o escondeu no bolso interno do jaleco. Seguiu com o restante da limpeza, mas o tempo parecia ter perdido o ritmo. Cada passo, cada gesto, era acompanhado por pensamentos que não cessavam.

“Cuidado com quem acredita em você.” O que isso significava?

Será que era uma crítica velada? Um recado entre executivos? Ou… para ela?

Na hora do café, tentou comentar sutilmente com Marina, mas algo a impediu. Um instinto silencioso — quase como se o papel ainda estivesse “vivo” no seu bolso, observando tudo.

No final da manhã, quando subiu ao 15º andar, a tensão que já sentia pareceu crescer. Encontrou a copa mais movimentada do que o habitual — dois executivos conversando em voz baixa, papéis nas mãos. Um deles parou quando ela entrou, como se sua presença fosse um lembrete inconveniente de que a sala não era completamente privada.

— Desculpem — disse Isabela, com um aceno discreto. — Só vou limpar e sair.

Eles assentiram sem responder.

Enquanto passava o pano nas bancadas de mármore, notou que os dois homens seguravam documentos com o título “Plano de Redução - Etapa 2” no cabeçalho. Fingiu não ter visto, mas cada célula de seu corpo ficou em alerta.

Etapa 2? Já havia uma primeira? Quantas mais viriam?

Ao sair da copa, viu Rafael Arantes surgir no corredor, falando ao celular. Ele a viu, e por um momento, interrompeu a ligação com um gesto para quem estava do outro lado da linha.

— Isabela — disse ele, com naturalidade incomum. — Preciso que organize a sala de reuniões executiva ainda hoje. Vai haver uma apresentação às 17h. Só confio em você pra isso.

Ela assentiu, surpresa pela menção direta.

— Claro, senhor. Estarei lá.

Ele voltou à ligação como se nada tivesse acontecido.

“Só confio em você.” As palavras ecoaram. Era coincidência? Ou o bilhete queria dizer exatamente isso — que a confiança podia ser um perigo?

Quando o turno terminou, Isabela subiu ao terraço do prédio. Era o único lugar onde conseguia respirar com liberdade. Ali, sob o céu encoberto, ela puxou o papel do bolso e o releu mais uma vez. A caligrafia era forte, quase grave.

O vento sacudiu seus cabelos soltos. Ao longe, a cidade pulsava como um organismo que nunca dormia. Isabela fechou os olhos por um instante, tentando conectar os fios soltos: os cortes, o vulto refletido, a tensão nos corredores, o bilhete… e Rafael.

Talvez não fosse paranoia. Talvez houvesse mesmo algo mais profundo acontecendo dentro da Constellation Global. E ela, mesmo estando nos degraus mais baixos da hierarquia, havia começado a perceber as rachaduras sob o mármore.

Guardou o bilhete dobrado dentro da pequena agenda que carregava consigo. Não o jogaria fora. Não ainda.

Talvez, pensou, aquilo fosse a primeira peça de um quebra-cabeça que ainda estava longe de se revelar por completo.

E naquele instante, mais do que medo, sentiu algo diferente.

Vontade de saber.

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