Mundo de ficçãoIniciar sessãoEla ergueu os olhos lentamente. Por uma fração de segundo que pareceu uma eternidade, seu olhar escapou pela nave da igreja e encontrou os de Kai. Ele estava do lado de fora da porta entreaberta, encarando o interior. A luz forte da tarde atrás dele o transformava numa silhueta escura, sólida, imóvel como uma estátua de desespero.
Ela não viu raiva em seu rosto. Não viu o fogo da revolta que ela tanto amava. Viu aceitação. Viu uma dor tão profunda e silenciosa que já não tinha forma nem grito. Era apenas um fato. Como a queda da noite. Se eu disser não, pensou Kai, do lado de fora, seu coração um bloco de gelo pesado em seu peito, eu corro. Entro lá agora. Arranco ela dali, mesmo que tenha que passar por todos aqueles homens de terno. Hoje. Se ela disser sim… O pensamento não terminou. Não precisava. A conclusão era óbvia e devastadora. …eu sobrevivo. Dou a volta por baixo. Encontro um jeito de respirar de novo. Amanhã. Os segundos se arrastaram, cada um mais pesado que o anterior. Ezra não a pressionou com palavras. Apenas esperou, sua confiança era uma presença física. Seu polegar esfregava o osso do pulso dela num ritmo lento, constante, paciente. Um ritmo de posse. Isla abriu a boca. O ar entrou, saiu, não trouxe coragem, só trouxe a necessidade física de emitir som. "Sim." A palavra saiu. Uma única sílaba. Pequena. Fraca. Sem eco ou grandiosidade. Um sussurro que, no entanto, atravessou o silêncio e atingiu cada canto da igreja. Foi o bastante. O rosto do padre se iluminou com um sorriso de alívio profundo. Ezra inclinou a cabeça para ele, um gesto breve e cortês de cavalheiro. Dos bancos, os convidados soltaram um suspiro coletivo, seguido por um murmúrio baixo que já não era de escândalo ou choque, mas de aprovação social, do alívio de ver a ordem restaurada. Kai não viu mais. A imagem do sorriso do padre foi a última que seu cérebro registrou antes de ele virar as costas para a igreja, para a música, para a vida que acabara de morrer ali. Ele não correu. Não soltou um grito que rasgasse o céu. Não arrebentou a porta de madeira entalhada. Apenas começou a andar. O capacete balançando ao seu lado, batendo contra sua perna a cada passo com um toque surdo e monótono. Cada passo era um adeus a uma memória. Aos planos feitos na madrugada. Ao cheiro do seu cabelo misturado com farinha. Ao futuro que eles tinham desenhado com tanto cuidado e tão pouca tinta. Tudo enterrado ali, sob um vitral colorido, com um único "sim". Dentro da igreja, Ezra se voltou completamente para sua nova esposa. Um pequeno sorriso, tão discreto que só ela poderia vê-lo, tocou os cantos de seus lábios. Não era um sorriso de triunfo barato. Era um sorriso de consolidação. De xeque-mate dado com elegância. De posse agora sacramentada perante Deus e os homens. Ele pegou a mão de Isla com uma firmeza gentil, mas inquestionável, e puxou-a suavemente para iniciar a caminhada pelo longo corredor central, sob os olhares de todos. Ela seguiu. Seus passos foram mecânicos. O vestido de noiva, outrora um símbolo de pureza e celebração, agora estava rasgado na barra, sujo de graxa e terra da estrada, e arrastava pelo piso de mármore polido, deixando um rastro quase imperceptível de poeira e ruína. Kai já estava a meio quarteirão de distância quando a compreensão final o atingiu, não como uma onda, mas como uma infiltração lenta e gelada. A clareza era tão cortante que doía mais que qualquer lâmina. Ele percebeu, com uma certeza absoluta que marcaria cada um de seus dias dali em diante, que não tinha perdido Isla naquele altar. Ali, naquela igreja silenciosa sob a luz da tarde, ele tinha perdido algo muito mais fundamental: o direito de lutar por ela. O direito de chamá-la de sua. O direito de acreditar que o amor, sozinho, era arma suficiente para a guerra que o mundo travava contra eles.






