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Elara entregava o corpo ao necrotério, acompanhava, através do vidro. O legista preparava-o, respeitosamente, desnudando o cadáver e o banhando.

— Isso aqui foi bem violento, Doutora. - O legista disse. - Quer mesmo assistir?

— Pode se soltar, não é nossa primeira vez. - Ela disse, friamente.

— Toillet à esquerda, Doutora. - Ele indicou, seguindo com a preparação.

A área de Elara, com corpos, presumia cadáveres mais antigos ou ossadas. Aquela mulher estava longe de seu campo de exames. Ela observava. Era uma mulher de estatura média, jovem, na casa dos vinte anos, sem joias ou aliança, nada que a identificasse. Se fosse muçulmana, algo a impediu de pôr seu hijab ou cobrir-se adequadamente, aquilo demonstrava desespero. Havia um corte na lateral do tórax. O centro do peito estava destroçado, como se tivesse sido atacada por um animal feroz de garras cruéis, os olhos, fundos, guardavam as cavidades sem seus habitantes. O crime havia sido visceral, irracional. Ela anotava. O legista anunciava o procedimento padrão.

— Hora aproximada da morte. - Ele estimava pela lividez do corpo. Elara associava, tinha sido no intervalo da tempestade que se abateu sobre a cidade na noite anterior. Ela observava, cuidadosa. Tomava notas. Um jovem policial se aproximou, já pelo meio da tarde.

— Doutora, o Chefe do departamento quer falar com a senhora. - O moço se virou, vendo o corpo devastado diante do vidro, a náusea o tomava, violentamente. Elara deu um passo atrás, indicando o caminho para o toillet, por onde ele sumiu.

— Terminamos aqui, Doutora. - O legista anunciou. - As digitais já estão no sistema. Deve ter a identidade da vítima logo.

— Obrigada, Doutor. - Ela agradeceu, se retirando. Subia até a chefia do departamento.

Os andares passavam. Elara se intrigava com aquela situação do corpo. Não tinham notícias de crimes tão violentos há muito tempo. Não havia atividade de grupos extremistas e, mesmo com a saída da Turquia da Convenção Internacional contra a violência contra a mulher, a tipologia do crime não indicava um ato passional ou um ataque contra o gênero, menos ainda, do tipo doméstica. Aquilo era diferente dos últimos anos. Absorta, ela entrou na sala da chefia e esperou ser anunciada.

— Por aqui, Doutora. - O secretário lhe dava passagem. O homem atrás da imponente mesa a encarava, furioso.

— Estou aqui, Chefe. Como posso ajudar? - Elara disse protocolarmente.

— Sabe por quê está aqui? - O chefe rugiu. A voz, profunda, parecia retorcida de algo bastante incômodo.

— Não, senhor. - Ela seguia com a postura firme e profissional.

— Há outra reclamação sobre sua conduta em campo, Doutora. - Ele disse, escorregando uma folha sobre a mesa.

— Essa eu estava esperando. - Ela se aproximou, pegando o papel. - Doutor Demir Zeki.

— Sabe quem é este homem? - O chefe rosnava as palavras.

— Deveria? - Ela perguntou, surpreendendo-o.

— É o maior historiador da Universidade de Istambul. Chefe do Departamento de História. Como pode não saber, Doutora Elara? - Ele se ultrajava.

— Não é meu campo de pesquisa, senhor. - Ela respondeu, sólida.

— Está suspensa, sem vencimentos, até segunda ordem. Entregue o caso e saia do prédio. Deixe a arma e o distintivo. - Ele decidiu.

— Sim, senhor. Com licença. - Ela disse. Voltou ao seu departamento, não era a primeira vez que era suspensa por se impôr a algum figurão. Quando chegou à sua sala, a vítima já tinha uma identidade e uma ficha. Era uma mulher qualquer, moradora de Balat, viúva, sem filhos. A família morava em Ancara. Era alguém comum, de vida simples, uma cozinheira que entregava refeições aos trabalhadores que encomendavam. "Como alguém assim acaba morta tão violentamente?" Elara se pegava pensando.

Como ordenada, deixava a arma, o distintivo e o relatório na mesa do secretário do chefe do departamento, assinando a nota de ciência de sua penalidade. Sua curiosidade a impulsionava a ir além. Tinha suas anotações consigo: no corpo, o coração havia sido substituído por uma peça cerâmica, rudimentar, pintada em branco, com arabescos coloridos nos sulcos que imitavam veias e artérias. Os olhos, arrancados sem piedade alguma. Aquele tipo de artefato era comum em algumas crenças que remontavam a própria história contada da civilização em Istambul.

****************

Demir entrava na sala de aula, mau humorado, cheia de alunos da graduação. Ele revirava os olhos, impacinte. A maioria ali eram rostos novos, gente que deveria estar ainda se ambientando e, naquele dia, em especial, o irritava. Ele respirou fundo e iniciou seu monólogo. Uma aula inaugural que já havia apresentado um sem número de vezes.

Ao fundo, uma figura feminina, mais madura, lhe chamou a atenção. Olhos intensos, atrás das grandes lentes dos óculos de aros finos, era a personificação de uma beleza turca moderna, tinha uma elegância natural que transcendia a mera aparência física de traços harmoniosos e olhar observador, anotava algo num caderno. Tinha uma postura confiante que exalava independência.

— Com isso, senhores, passaremos a um pequeno teste sobre seus conhecimentos prévios. Por favor, redijam um pequeno texto, de até trezentas palavras, com base em seus conhecimentos do período pré-bizantino. Os senhores têm uma hora e meia a partir de agora. - Ele determinou, acreditando se tratar de uma aluna nova. Via a mulher, sofisticada, de estilo discreto e impecável, retirar-se. - Senhorita, não acabamos aqui. - A mulher se virou para ele, portando consigo uma bolsa pequena, atada ao braço e uma pasta, ambas de couro finamente tratado e bonitos entalhes dourados que pareciam antigos. A presença marcante o olhou, diretamente, arrancando seu ar dos pulmões.

— Pode haver um equívoco, Doutor. Sou apenas uma ouvinte. - Ela disse, séria. A voz dela lhe cortava os ouvidos. "Você..." Ele pensou.

— A que devo a visita da ilustre Doutora nesta humilde reunião de crianças de playground? - Ele disse, hostil.

— Imagino que sua função seja distribuir conhecimento, não? - Ela o colocava contra a parede sob os olhares curiosos dos alunos que assistiam a hostilidade entre o professor e a ilustre desconhecida a quem ele dava o título de "Doutora". Elara esperava uma resposta, em uma frase o havia colocado em uma posição desconfortável. A beleza que equilibrava uma força surreal com aquela elegância natural e discreta, de cabelos longos, de um castanho escuro profundo, soltos, o colocava em uma posição difcil. Tinha as maçãs do rosto levemente proeminentes, marcando a face que sustentava olhos da cor de avelãs torradas, intensos, expressivos e perspicazes. Havia naquele olhar uma profundidade que sugeria alguém de alma ativa e contemplativa. O silêncio se tornava denso quando ela ergueu uma das sobrancelhas, bem definidas que lhe emolduravam a expressão com a delicada maquiagem. Tinha o olhar inteligente. Não era alta, de porte esguio, postura ereta e confiante, assumia uma pose precisa e desafiadora que o fazia se enfurecer ainda mais com a presença dela.

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