Elara se virou e saiu da sala, ganhando o corredor antigo, de pedra e bonita iluminação do prédio catedrático. Tinha o andar etéreo, leve como uma gata.
— Continuem com a atividade. - Demir ordenou, apressando-se para alcançar aquela figura odiosa. No corredor, a agarrou pelo braço. Ela vestia uma elegante pantalona preta, de cintura alta, com a blusa de cetim dourado que repousava sobre sua pele clara. Ela o olhou, por cima do ombro, fria, ríspida. - O que veio procurar aqui? — Nada. Quis distrair a mente em um lugar estimulante e intelectualmente elevado. Obviamente, me equivoquei. - Elara o desafiava, afiada. — Você... - Ele rosnou entre os dentes, apertando ainda mais seu braço. Sob o cardigã longo, de lã preta, macia e bem trançada, algo duro se apresentava, um bracelete, talvez. Ela tinha um cheiro frutado, suave, apetitoso. Nas orelhas, pequenos brincos de pedras vermelhas, de estética antiga, em forma de flores minúsculas, com pequenos pontos de luz amarelos no meio, atraiam a atenção do homem. A mulher era tão bonita quanto detestável. — Está causando uma cena. Olhe ao seu redor. - Demir percebia os olhares direcionados a eles. - Me solte ou vou fazer um escândalo. - Ela sussurrou, se inclinando levemente para trás. Demir usava um perfume másculo, que imprimia notas de algo caloroso e envolvente. Ele tinha a presença imponente, lembrava-a de um predador. Os olhos verdes, vibrantes, de cor profunda, emoldurados pelas sobrancelhas expressivas, escuras, aninhavam ao cenho franzido, prestes a explodir em fúria. Tinha os cabelos castanho escuros, de comprimento médio, presos pelo escalpo. Toda a sua figura dele era um tanto boêmia, despreocupada. Havia aquele quê harmonicamente desorganizado como se algo mais importante o impedisse de buscar a perfeição. A barba, rala e bem aparada, apesar da aparência geral irreverente, emoldurava o rosto de traços mediterrâneos encantadores e o maxilar de linhas fortes e másculas. Alto e atlético, de mãos fortes que ela sentia lhe apertar um braço, dolorosamente, tinha a postura autoritária e convicta. O paletó de lã marrom abrigava a camiseta branca, leve, que escondia o corpo, cuja forma denunciava, veladamente, o peitoral forte e musculoso. "Tinha que ter uma personalidade tão ruim?" Ela ponderou consigo mesma, fechando os olhos lentamente, apreciando seu cheiro enquanto inalava, profundamente. O movimento do busto bonito dela, que o ângulo de visão dele privilegiava, inflava delicadamente, anunciando o risco a que seria exposto. Ele a libertava. - Obrigada. Com licença, Doutor. Ela se afastava, abrindo caminho entre as pessoas que cochichavam no lugar, encarando a ele ou a ela. Tinha o caminhar leve, uma névoa. "Tinha que ser tão soberba?" Ele a reprimia mentalmente. Ele retornou à sala de aula frustrado, observava o movimento de sua janela, enquanto as tarefas eram empilhadas sobre sua mesa. Do alto, via Elara, em um sobretudo de couro preto, sob a marquise, erguer um capuz de lã negra sobre os cabelos, fechando a gola, esticada para proteger o pescoço. Calçava as luvas de couro. Abriu o guarda-chuvas transparente e se colocou no caminho de pedra, molhado, sob a chuva. As luzes dos postes do passeio, refletidas no chão, faziam parecer que ela flutuava entre sóis em uma galáxia estrelada. A chuva tocava o guarda-chuva, dando o aspecto de uma cúpula de estrelas sobre a figura que mal tocava o chão. De canto de olhos, ela o encarava, predatória, inteligente. Sem os óculos, era tão tentadora quando odiada. Elara via Demir na janela, era um tipo atraente, que exalava uma masculinidade notável. Ela desviou o olhar, forçando um arrepio gélido percorrer as costas dele. Sumia em meio à bruma que já se formava, na fria noite invernal. *************** "Um coração de cerâmica rústica." Elara, pela manhã, procurava referências na biblioteca da Universidade. Revirava o acervo até encontrar uma indicação no catálogo. "A História sob a ótica do misticismo romântico." Ela abria a ficha catalográfica da obra. "Argh!" Ela interjeição em seu pensamento. O autor da pesquisa? Ninguém menos que o homem que tinha sido a gota d'água de sua situação, no trabalho: Doutor Demir Zeki. Ela suspirou, profundamente, marcando o endereço do livro naquele imenso labirinto de conhecimento. Na sessão de história, um imenso acervo daquele homem hostil. "Produtivo, pelo menos." Ela se sentou no chão, ali mesmo, ao pé da prateleira, colocou seus óculos e começou a ler. Sentia-se num roteiro escrito de um documentário sensacionalista e fantasioso. Sorria, levemente, com a escolha de palavras dele. Era quase uma prosa. O largo suéter pendia por seu ombro, revelando a regata justa, um antigo bracelete de pedra negra, com símbolos alquímico gravados, de perfeito entalhe, pouco acima da mancha roxa em seu braço. Tinha o livro apoiado nos joelhos, dobrados e emparelhados. Com uma das mãos, um quase toque nas páginas com cheiro de poeira, cheias de anotações de uma letra elegante, a lápis. Apoiava indicador da mão livre, suavemente, sobre os lábios carnudos, com aquela expressão divertida. Apesar de tudo, encontrava a informação: o coração cerâmico, de uma cultura obscura dos Balcãs, muito anterior ao que se tinha registros sólidos, mitos. De certo modo, não passava de histórias que se passavam, de geração em geração, entre velhos bêbados, lenda popular, mas um ponto de partida, de qualquer forma. O estudo dele indicava uma cultura anterior à formação da Grécia em que aqueles corações cerâmicos eram colocados no lugar dos corações das noivas que morriam virgens, após o casamento, sem o consumarem, para que seu amor não fosse profanado pelo mal. Aquele objeto era caríssimo e tratado como uma joia. Era bem clichê, mas muitos elementos coincidiam. Noivas, na antiguidade, implicavam mulheres jovens e virgens. A vítima era mulher e jovem, mas uma viúva virgem era exagero, especialmente, porque a cultura árabe, como um todo, não valorizava tanto aquela virtude feminina. Virgem era a chave daquilo tudo. As poucas peças que deram fundamento parcial àquela historieta travestida de ciência, eram parciais e muito danificadas. Ela via o desenho, intrigada. Era parecido com a peça retirada de sua vítima, na manhã do dia anterior. Ela seguiu a leitura, por puro entretenimento, ainda que o homem fosse detestável, tinha a escrita envolvente que cativava, era fácil de ler o que ele escrevia.