De uma criança vinda de um misterioso quadro de terror, o Ulika cresce e vai deambulando por um país desconhecido. Entre uma gente que não é sua mas não lhe é hostil. A tonalidade da sua pele, a cor de seus olhos e mesmo seu próprio nome, despertam muitas suspeitas e paixões. Mas ele é diferente, indiferente e misterioso. Dono de um charme ao qual nenhuma mulher resiste. Mas todas as mulheres que com ele se envolvem acabam mortas. Feito um deus dono de tudo e do tempo, o destino lhe reserva um fim bastante interessante...
Leer másULIKA - um herói sem génese
Um bom livro é aquele que provoca no leitor reflexões, que o faz pensar em diversas situações; enfim, que o induza a certas provocações. Quando leio um livro não me preocupo apenas com seu enredo, mas, principalmente, com o que ele pode dialogar comigo, mexer com minhas ideias, com a minha cultura. Espero que ele me apresente novidades ou que me faça andar por outros caminhos. Rubem Alves, que é um grande cronista brasileiro, ensina que um bom texto é aquele que nos deixa transformados, que nos faz pensar. Após a leitura de um bom texto, não seremos mais os mesmos. A leitura, nesse sentido, é uma viagem. Gosto de viajar nas leituras que faço. Quem escreve é um viajante do tempo e das realidades do mundo. Como sou mais poeta do que ficcionista (pelo menos, eu imagino que seja), procuro ver, como diz Manoel de Barros, o delírio do verbo, que é a chave da poesia. Literatura é a arte do delírio do verbo – e também do pensamento -, é onde podemos fazer as nossas transgressões, inclusive do pensamento.
No outro dia recebi uma solicitação do jovem escritor angolano Banny de Castro para prefaciar o seu Ulika. Sou nordestino, do Piauí, uma região muito parecida com a realidade africana, e me encheu de prazer o convite do jovem angolano, para anteceder a leitura de seu livro.
Em um primeiro momento, pensei em nossos países (Brasil e Angola), tão distantes e, ao mesmo tempo, tão pertos. Há, entre os dois, fortes ligações, sejam étnico-culturais, sejam linguísticas. Fomos colonizados pelos portugueses, que nos impuseram a língua, os costumes, as tradições e a religião (o Cristianismo). Entretanto, há pontos que devem ser observados. Por exemplo, os brasileiros falam e escrevem um português abrasileirado, sem o sotaque de Portugal, já os angolanos primam pelo português bem aportuguesado, com muito sotaque. Acho que é devido ao rigor e ao tempo de colonização. O Brasil tornou-se independente no século XIX, enquanto que Angola só no final do século XX. Existe, porém, uma marca nos angolanos, que nós brasileiros não temos, que é a referência das línguas primitivas, dentre as quais a língua umbundu em que o jovem escritor angolano tão bem se expressa. Por outro lado, tanto nós brasileiros quanto os angolanos, sentimos muito a falta de uma identidade própria, uma vez que esta nos foi roubada pelo colonizador. E isto, pelo menos eu penso, em nós é muito mais incisivo e característico, devido às inúmeras influências étnico-culturais que recebemos.
Em um segundo momento, o da leitura do livro de Banny de Castro, confesso que me causou muito estranhamento, razão pela qual fiz a leitura em dois fôlegos. Durante a primeira leitura, que necessitou de boa parte da noite, já me impressionei com a ideia: só existe morte, não haverá ressurreição (Kuliñgo okufa, kakuli epinduko). E a falta de uma personalidade definida ou também de uma identidade do personagem Ulika, que dá nome ao livro, me fizeram algumas provocações. Pensei no Brasil e em Angola, nos escravizados vindos da África para o Brasil em navios negreiros, à mercê da sorte, num corte abrupto do cordão umbilical que os unia à Pátria-mãe.
Há muitas provocações no livro, e há também algumas ideias instigantes. O tempo, a vida, a morte e a liberdade são discutidos ao longo do livro, fugindo dos padrões conceituais. Vive-se naqueles que já morreram? Ou morre-se naqueles que vivem? A não-existência é uma forma de existir para sempre? Esse tipo de questionamento é provocado a partir da relação entre Ulika e o Wafile Ale, este último um personagem que já vivera em outras eras, emergido da profundeza dos cemitérios. A ideia de não conhecer a origem (de onde veio e para onde vai) faz de Ulika um personagem não-personagem, um ser inexistente. No segundo momento da leitura, pude me concentrar nas discussões que eram sistematicamente sugeridas pelas relações entre o personagem central e as mulheres que por ele se apaixonavam (Wanda e Mbela).
Achei o livro muito provocativo – o que lhe garante boa qualidade -, é uma espécie de metáfora ou mesmo uma hipérbole para entender que a nossa identidade não está apenas em nós mesmos, que atravessa mundos, faz viver/e reviver vidas diferentes, nem que sejam outras vidas.
Em alguns momentos do livro, pensei na ideia da morte, naquela inscrição na cruz sobre o túmulo: só a morte existe... Culturalmente é quase impossível renascer, ter vida nova, sem os machucados deixados pelo colonizador. A colonização nos tornou inférteis, desprovidos de nossas raízes. Em síntese, é preciso entender que necessitamos morrer para renascer. “A morte...é uma invenção dos deuses, e do Ulika, para se divertirem”.
Imagino que Ulika signifique único: sem sobrenome, sem origem, sem destino certo, diferente de tudo e de todos, indiferente a tudo. É uma hipérbole da vida e da morte, mas capaz de deixar que o leitor dialogue consigo mesmo e entenda que muitas certezas são coisas muito incertas.
O livro de Banny de Castro apresenta elementos importantes para uma boa discussão académica. Diferente de tudo que tenho lido, Ulika se me apresenta inovador na narrativa e problematizador no conteúdo das questões vitais e mundanas.
Vale a pena conferir a leitura de Ulika do jovem escritor angolano Banny de Castro.
Lourival da Silva Lopes
O funeral do Ulika foi um acontecimento marcante no seio do partido. Todos os membros do governo estavam lá, engalanados e ufanos… poucos estavam realmente condoídos e entristecidos. Alguns foram apenas para cumprir formalidades e exibir as vestimentas. Entretanto, coube ao Primeiro-ministro dizer palavras de adeus ao malogrado. Porém, o discurso que ele proferiu pareceu místico para todos os presentes. Pela primeira vez os membros do governo viam o Primeiro-ministro a usar uma linguagem que não lhe era familiar; livre dos costumeiros jargões políticos e de propaganda. Disse coisas que a muitos pareceram absurdas e a outros lacónicas; e se não fosse o costume de se considerar óbitos como algo solene, todo mundo teria ou rido ou protestado. Disse coisas tais como: a morte… é uma invenção dos deuses, e do Ulika, para se divertirem.Duas semanas mais tarde, num determinado dia de tempo chuvoso, quando a chuva caíra pela madrugada e a manhã parecia som
Num belo dia saiu de carro; agora ele tinha muitos carros, mas dificilmente conduzia. Hoje foi conduzindo pela cidade, pelas ruas movimentadas, onde se conduzia desobedecendo os regulamentos do trânsito rodoviário. Numa velocidade serena, como que excogitando, o nosso Ulika circulava de um lado para o outro, com o olhar sempre além. Foi assim que apareceu um desses símios, desses seres humanos que não têm mínima noção de vida em comunidade, conduzindo numa velocidade de pistas, que embateu violentamente contra a viatura do Ulika.De repente o seu carro capotou e o Ulika ficou entalado por dentro, penosamente machucado.A Polícia chegou mais tarde. Descobriram-no sangrando de diversos orifícios do corpo. Tinha concussões, graves lacerações e ossos quebrados em todas as partes do corpo. O pior, entretanto, estava na cabeça.Como foi reconhecido a tempo pelos agentes da polícia, foi socorrido com alguma prontidão.Foi levado de emergência ao hospital. Pelos sina
Tudo andava ao seu ritmo normal, mesmo o tempo; o tempo repetia-se, os dias, as estações e todas os seus componentes funcionavam como os ponteiros de um relógio, do maior relógio do mundo colocado no invisível.O Ulika ficou mais rico, mais influente também; tinha muitas simpatias e todo mundo do partido queria fazer-se seu amigo.Ganhou mais carros, mais regalias e melhores condições de vida. O seu capital só aumentava. O envelope que tinha recebido do Wafile Ale continuava inesgotável. A tal ponto que a Mbela tinha contratado uma dúzia de pessoas para trabalharem em sua casa, enquanto ela passava a vida a se embelezar.Às vezes ele era convidado para encontros festivos promovidos pelo governo, encontros esses em que predominavam bebidas alcoólicas, música disparatada alta e mulheres prostitutas; as prostitutas eram as mesmas mulheres parlamentares e as dos parlamentares que ali compareciam. Nem sempre ele aceitava esses convites; mesmo quando fosse, ele não se de
Nos seus dias de folga ele patinava ou metia-se entre os bairros inóspitos da capital, a pé. Estes bairros eram o protótipo da degenerescência. Manavam à morte, era por isso que as pessoas ali eram mais vivas, mais cheias de agressividade e que se cometiam muitas violências físicas e verbais. Pois a vida, sendo a outra face da mesma moeda, tornava-se mais intensa quanto mais próxima estivesse da morte; e os subúrbios dessa capital eram o Reino da Luta Constante visando a sobrevivência. O único alimento das almas dos que ali habitavam era música, música disparatada e desarmónica.Algumas raras vezes saía no seu carro para visitar zonas mais distantes ou para contemplar o mar.Às vezes a chuva caía e a terra tornava-se lamacenta, de tal sorte que era impossível sair de casa. Ficava ali, sentado ou amparando um livro qualquer. Aprendeu agostar de ler na casa do Wafile Ale, mas nunca se tinha emocionado por uma história, fosse real fosse fictícia; na verdade nada emocionava
A azáfama que se regista nas capitais é um pequeno exemplo do que será uma sociedade completamente civilizada; do que será o fim da socialização. A pior desordem existe nessas comunidades onde os valores dos seus ancestrais foram bruscamente cambiados pelos dos seus colonizadores. Nos povos inculturados que saem diretamente das matas para se abrigarem indignamente em zonas urbanas concebidas pelos outros. Ali a desordem é de tirar o fôlego; os centros urbanos de alguns países negros são atrozes. Neles tudo se encontra de patas para o ar.Mas isso não incomodava ao nosso herói, ele era distinto, incomum. Nem olhava para as coisas do mundo com um olhar com compaixão.Mal chegou na capital foi-lhe oferecida uma residência numa rua calma da cidade, numa das melhores ruas desse burgo, também litorâneo. Mais um carro, de marca sonante, e muitas mordomias.Nas reuniões que ele participava tudo tomava outro rumo. Suas opiniões esquecidas, desapaixonadas, deixavam os homens
Nessa cidade o Ulika vai desempenhar uma atividade para a qual não foi licenciado: Política.Mal chega, começa a frequentar círculos políticos. O partido que estava a governar o país foi o que teve e honra de acolhê-lo. Filiou-se alguns dias depois do seu efetivo estabelecimento ali; e como para a política o que importa é mais um, independentemente das suas qualidades e habilidades, não passou pelo incómodo de satisfazer perguntas e curiosidades. Quem sabia era dissidente de um outro partido? Mas era claro que seria difícil um moço com a aparência deste ter sido de um partido oposto; o regionalismo faz parte da situação dos partidos políticos de cá; é bem sabido que os do sul são todos escurinhos e que todos os escurinhos são do partido y. Diz-me o que és e de onde és e eu dir-te-ei em que partido pertences, é um lema considerável. Todo mundo sabe que os da cidade x, do centro sul do país, são, não apenas maioritariamente, mas todos, do partido x; os da cidade y, do norte, são
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