Mundo de ficçãoIniciar sessãoDuas mulheres com passados mal resolvidos se reencontram em um contexto inesperado. O desejo surge rápido — mas cada uma esconde algo que pode destruir a outra. Entre encontros intensos, segredos e decisões difíceis, o amor vira risco.
Ler maisHelena não acreditava em coincidências. Pelo menos não depois de ter passado dos trinta e aprendido, da maneira mais dura possível, que tudo o que parecia casual demais geralmente escondia algum tipo de intenção. Ainda assim, enquanto atravessava o corredor estreito do prédio antigo onde acabara de alugar uma sala comercial, sentia que havia algo diferente naquela manhã — um tipo de expectativa silenciosa que não sabia explicar.
O lugar cheirava a madeira velha e café recém-passado. As paredes claras refletiam a luz suave que entrava pelas janelas altas, e o som distante da rua parecia abafado, como se aquele prédio existisse fora do ritmo apressado da cidade. Helena gostava disso. Precisava disso. Depois de anos tentando se encaixar em lugares que nunca foram feitos para ela, buscava agora algo que fosse só seu. Ela parou diante da porta com o número 302, respirou fundo e girou a chave. A sala ainda estava vazia, exceto por algumas caixas empilhadas no canto e uma mesa simples encostada na parede. Era pouco, mas era um começo. E, naquele momento, parecia mais do que suficiente. — Você deve ser a nova inquilina. A voz veio do corredor, firme e calma. Helena se virou devagar, sentindo um arrepio involuntário percorrer-lhe a nuca. À sua frente estava uma mulher que ela definitivamente não esperava encontrar naquele tipo de lugar. Morena, cabelos presos de maneira displicente, óculos de armação fina e um sorriso contido, quase profissional demais. Havia algo no jeito como ela se apoiava na porta — segura, confortável no próprio corpo — que chamou a atenção de Helena imediatamente. — Sou eu mesma — respondeu, tentando manter a naturalidade. — Helena. — Laura — disse a mulher, estendendo a mão. O toque foi breve, mas suficiente para que Helena sentisse um calor estranho se espalhar pelos dedos. — Sou dona da sala ao lado. E, informalmente, a pessoa que mais reclama do barulho quando alguém resolve arrastar móveis fora de hora. Helena sorriu, um sorriso genuíno, daqueles que surgem sem esforço. — Prometo ser discreta. — Espero que sim — Laura respondeu, sustentando o olhar por tempo demais para alguém que acabara de conhecer. Houve um silêncio curto, mas carregado. Helena percebeu, então, que não era a única a sentir aquela tensão súbita, quase elétrica. Laura desviou o olhar primeiro, pigarreando. — Se precisar de qualquer coisa… — começou, apontando com o polegar para a própria sala — estou por aqui. — Obrigada. Vou lembrar disso. Laura assentiu e se afastou pelo corredor, deixando para trás um rastro de curiosidade que Helena não conseguiu ignorar. Assim que a mulher desapareceu, ela encostou-se à porta fechada e fechou os olhos por um instante. Era ridículo. Absolutamente ridículo. Mas seu coração batia mais rápido do que deveria. Nos dias seguintes, os encontros tornaram-se frequentes. Coincidências demais para quem não acreditava nelas. Laura aparecia na cozinha compartilhada sempre que Helena preparava café. Cruzavam-se no corredor no fim da tarde. Trocavam comentários breves, sorrisos rápidos, olhares que começavam a dizer mais do que qualquer palavra. Helena percebeu que esperava por esses momentos. Que se arrumava um pouco mais nos dias em que sabia que Laura estaria ali. E isso a incomodava. Não por falta de interesse — pelo contrário —, mas porque havia aprendido a manter distância. A não se permitir criar expectativas. Havia um motivo para isso. Um segredo que carregava consigo e que não dividia com ninguém. Laura, por sua vez, parecia ler nas entrelinhas. Havia algo no olhar dela — atento, quase cuidadoso — que fazia Helena sentir-se vista. E isso era perigoso. Certa tarde, a chuva caiu forte, prendendo as duas no prédio além do horário habitual. O som das gotas contra as janelas preenchia o silêncio entre elas, agora sentadas na pequena cozinha, cada uma com uma xícara nas mãos. — Você sempre fica até tão tarde? — Laura perguntou, quebrando o silêncio. — Só quando preciso organizar a cabeça — Helena respondeu. — O trabalho ajuda nisso. — Entendo — Laura disse, observando-a com atenção. — Às vezes a gente foge de casa para encontrar silêncio. O comentário foi simples, mas acertou fundo. Helena ergueu os olhos devagar. — Ou para evitar pensar demais. Os olhares se encontraram outra vez. Dessa vez, não houve pressa em desviar. O ar entre elas parecia mais denso, carregado de algo não dito. Laura se inclinou levemente para a frente, apoiando os cotovelos na mesa. — Você não fala muito de você — disse em tom baixo. — E você observa demais — Helena respondeu, com um meio sorriso. Laura riu, um som discreto, quase íntimo. — Talvez porque eu goste de prestar atenção. O silêncio que se seguiu foi diferente dos outros. Não era desconfortável. Era cheio. Cheio de possibilidades, de desejo contido, de perguntas que ainda não podiam ser feitas. Helena soube, naquele instante, que estava entrando em um território perigoso. Sentia o desejo crescer, silencioso, insistente. Mas junto dele vinha o medo. Porque, entre o que ela queria e o que podia oferecer, havia um segredo. E segredos, cedo ou tarde, sempre cobravam seu preço. E, ainda assim, quando Laura se levantou e tocou de leve sua mão antes de ir embora, Helena não se afastou. Talvez algumas coisas valessem o risco. ---Helena passou o dia inteiro com a sensação de estar em suspensão. Nada parecia exatamente errado, mas tudo parecia frágil demais. As horas avançaram lentas, marcadas por tarefas automáticas e pensamentos que insistiam em voltar ao mesmo ponto: o que acontece quando amar deixa de ser apenas íntimo e passa a ser visível? No fim da tarde, recebeu a mensagem de Laura: “Precisamos conversar. Hoje.” Helena não respondeu de imediato. Não por hesitação, mas porque sabia que aquela conversa encerraria um ciclo — de dúvida, de cuidado excessivo, de tentativas de caber onde nunca houve espaço suficiente. Quando chegou ao apartamento de Laura, a porta já estava aberta. Laura estava sentada no sofá, o corpo levemente inclinado para frente, as mãos entrelaçadas. O olhar era firme, mas carregava cansaço. — Eu pensei muito — Laura disse, assim que Helena entrou. Helena sentou-se ao lado dela, mantendo uma pequena distância, respeitando o momento. — Eu também. Laura respirou fundo, como quem o
O acontecimento não veio como um escândalo. Veio como essas coisas costumam vir em cidades pequenas: um detalhe fora do lugar, um comentário atravessado, um encontro casual que não deveria ter sido visto por quem viu. Helena percebeu que algo estava errado antes mesmo de entender o quê. Era fim de tarde quando ela entrou no café do centro, procurando um lugar discreto para esperar Laura. O ambiente estava cheio, mais do que o habitual. Conversas baixas, risadas contidas, olhares que se levantavam rápido demais e se desviavam com atraso calculado. Ela sentiu o corpo reagir com um alerta antigo, aprendido à força em outros tempos. Laura chegou alguns minutos depois. Ao cruzar a porta, os olhares se concentraram nela por um segundo mais longo. Não houve cochichos audíveis, mas houve um silêncio estranho, quase respeitoso — e isso foi o mais revelador. — Eles sabem — Laura murmurou ao sentar-se. Helena sentiu o coração acelerar. — O quê, exatamente? Laura respirou fundo. — Não tud
Helena acordou antes de Laura, envolta por uma sensação que misturava calma e expectativa. O quarto ainda estava mergulhado numa luz suave, quase tímida, e o silêncio era interrompido apenas pela respiração tranquila ao seu lado. Ficou alguns minutos observando Laura dormir, notando detalhes que antes passavam despercebidos: a forma como o peito subia lentamente, o rosto sereno quando não havia ninguém observando, o abandono raro que só acontece quando não se espera defesa. Havia algo profundamente íntimo em estar ali sem pressa. Sem fuga planejada. Quando Laura se mexeu, abrindo os olhos aos poucos, o sorriso veio antes da fala. — Você ainda está aqui — disse, a voz rouca do sono. — Eu disse que ficaria — Helena respondeu, com suavidade. Laura estendeu a mão, tocando-lhe o braço, como se confirmasse a realidade daquele momento. O gesto simples carregava mais significado do que qualquer declaração direta. Helena sentiu o toque percorrer-lhe a pele com uma familiaridade nova, conq
Helena percebeu a mudança antes mesmo de alguém dizer qualquer coisa. Não foi um comentário direto, nem um confronto imediato. Foi o jeito como os olhares passaram a demorar um segundo a mais do que o normal. O silêncio que surgia quando ela e Laura entravam juntas em algum ambiente. A sensação incômoda de que algo que ainda era frágil começava a ser observado. Ela conhecia bem aquela sensação. Já havia vivido isso antes, em outras cidades, outros contextos. A diferença agora era que não estava sozinha — e isso tornava tudo mais intenso. Laura foi a primeira a verbalizar. — Estão falando — disse, numa tarde em que dividiam um café na varanda. Helena não fingiu surpresa. — Eu imaginei. — Não de forma explícita — Laura continuou. — Mas o suficiente para eu perceber. Helena apoiou o cotovelo na mesa, respirando fundo. — Isso muda alguma coisa pra você? Laura demorou a responder. Não por dúvida, mas por cuidado. — Muda o cenário — disse, por fim. — Não o que eu sinto. A respost
A manhã seguinte chegou de um jeito diferente. Helena percebeu isso antes mesmo de abrir os olhos. Não havia o peso habitual no peito, nem aquela necessidade urgente de organizar pensamentos e emoções antes de encarar o dia. Havia silêncio — mas um silêncio bom, cheio de resquícios da noite anterior. Ela ficou alguns minutos deitada, revivendo sensações com calma. O toque cuidadoso, o tempo desacelerado, a ausência completa de medo. Não fora apenas um encontro íntimo. Tinha sido uma espécie de acordo silencioso entre corpo e coração. Pela primeira vez, Helena não sentia vontade de se afastar depois de se aproximar tanto. Levantou-se, tomou banho e escolheu a roupa com mais atenção do que de costume. Não por insegurança, mas porque algo dentro dela queria permanecer conectada àquele momento. Antes de sair, hesitou por um instante, pegou o celular e escreveu: “Bom dia. Ontem ficou comigo.” A resposta veio alguns minutos depois: “Ficou comigo também.” Helena sorriu. No prédio, tud
Helena não dormiu naquela noite. Não por ansiedade, nem por arrependimento, mas por uma espécie de vigília silenciosa do corpo, como se cada parte dela soubesse que algo estava prestes a acontecer. O desejo não vinha mais como urgência desordenada — vinha como uma certeza madura, construída com cuidado, paciência e escolha. Na manhã seguinte, acordou cedo demais e decidiu não lutar contra isso. Preparou café, abriu a janela e deixou o ar fresco preencher o espaço. Pensou em Laura sem tentar afastar o pensamento. Pensou no toque que havia demorado mais do que o necessário na despedida, no olhar que não pediu pressa, mas também não recuou. No meio da manhã, o celular vibrou. “Você vem hoje?” Helena sorriu antes mesmo de responder. “Vou.” Não houve mais mensagens depois disso. Não precisavam. Quando chegou ao prédio, o corredor parecia silencioso demais. Helena caminhou até a porta de Laura com uma calma que não sentia por dentro. Bateu uma vez. A porta se abriu quase imediatament
Último capítulo