Mundo de ficçãoIniciar sessãoO toque de Laura permaneceu na mente de Helena por mais tempo do que ela gostaria de admitir. Não foi um toque íntimo, nem ousado — apenas dedos encostando nos seus por alguns segundos a mais do que o necessário. Ainda assim, foi suficiente para desorganizar tudo o que ela vinha tentando manter sob controle.
Naquela noite, em casa, Helena caminhava de um lado para o outro, incapaz de se concentrar em qualquer coisa. A chuva ainda caía fina lá fora, o cheiro de terra molhada entrando pelas frestas da janela. Ela tentou ler, tentou organizar papéis, tentou ignorar o próprio corpo reagindo a lembranças tão recentes. Mas quanto mais tentava afastar os pensamentos, mais a imagem de Laura surgia nítida demais. Havia algo no jeito dela olhar. Não era invasivo, mas atento. Como se estivesse sempre prestes a fazer uma pergunta importante — e respeitasse o silêncio caso a resposta não viesse. Aquilo mexia com Helena de um jeito perigoso. Pessoas assim costumavam enxergar mais do que deveriam. Na manhã seguinte, Helena chegou ao prédio mais cedo do que o habitual. Precisava ocupar a mente antes que os pensamentos voltassem a caminhos indesejados. Abriu a sala, colocou música baixa e começou a organizar as caixas restantes. O ritmo do trabalho ajudava, mas não eliminava a sensação incômoda de expectativa. Ela se pegou olhando para a porta mais vezes do que gostaria. Quando ouviu passos no corredor, seu corpo reagiu antes mesmo de sua mente confirmar quem era. — Bom dia — disse Laura, surgindo na porta com um copo térmico nas mãos. Helena levantou o olhar, sentindo o coração acelerar de novo. — Bom dia. Houve uma pausa curta. Laura observou a sala, agora um pouco mais organizada, e sorriu. — Está ficando com a sua cara. — E como você sabe qual é a minha cara? — Helena perguntou, sem pensar muito. Laura arqueou levemente a sobrancelha, divertida. — Ainda não sei. Mas estou começando a desconfiar. O comentário pairou entre elas, carregado de intenção. Helena apoiou-se na mesa, cruzando os braços de maneira defensiva — um gesto automático que não passou despercebido. — Quer café? — perguntou, mudando de assunto. — Aceito. Na pequena cozinha, o silêncio voltou a se instalar, mas agora era diferente do constrangimento inicial. Era um silêncio cheio de observações. Laura encostou-se na bancada enquanto Helena mexia o café, sentindo-se observada de um jeito que não a incomodava completamente. Pelo contrário. — Posso perguntar uma coisa? — Laura disse, em tom cuidadoso. Helena hesitou antes de responder. — Depende da pergunta. Laura sorriu de leve. — Você sempre parece pronta para ir embora, mesmo quando está chegando. Helena parou o movimento por um segundo. Aquela observação a atingiu com mais força do que gostaria. — É um hábito — respondeu, retomando o gesto. — Algumas pessoas aprendem cedo a não se acomodar demais. — E outras — Laura completou, aproximando-se um pouco mais — aprendem a ficar. Os olhos se encontraram novamente. Helena sentiu o ar faltar por um instante. Havia uma sinceridade ali que a desarmava. E isso a assustava. Ela entregou a xícara a Laura, os dedos se tocando outra vez, dessa vez de forma mais consciente. Nenhuma das duas se afastou de imediato. O mundo pareceu diminuir ao redor delas, como se o corredor, as salas, a própria cidade tivessem desaparecido. Foi Helena quem quebrou o contato primeiro. — Eu não sou fácil de entender — disse, quase como um aviso. — Eu não estou com pressa — Laura respondeu, sem hesitar. A resposta ficou ecoando na mente de Helena durante o resto do dia. Ao longo da semana, a proximidade entre elas cresceu de maneira natural, quase inevitável. Conversas rápidas tornaram-se mais longas. Comentários casuais ganharam camadas de significado. Havia risos, havia silêncios confortáveis e, sobretudo, havia uma tensão constante — aquela linha invisível que ambas sabiam que estavam se aproximando de cruzar. Mas Helena carregava um peso. Um passado que não era simples. Um relacionamento encerrado de forma abrupta, marcas ainda abertas, decisões que mudaram tudo. Havia escolhido o silêncio como forma de proteção. Não por vergonha, mas por cansaço. Explicar-se exigia energia que ela nem sempre tinha. Laura, por outro lado, parecia perceber que havia algo ali. E, ainda assim, não pressionava. Observava. Esperava. Numa sexta-feira à tarde, quando o prédio começava a esvaziar, Laura apareceu na porta de Helena com um sorriso contido. — Estou indo embora — disse. — Mas pensei em convidar você para um bar ali na esquina. Nada demais. Só para conversar fora dessas paredes. Helena sentiu o estômago se revirar. Aquilo era o passo que ela vinha evitando — e desejando — ao mesmo tempo. — Hoje? — perguntou. — Só se você quiser — Laura respondeu, com calma. — Sem expectativas. Helena sabia que não era verdade. Havia expectativas, sim. Das duas partes. E havia também o risco. O desejo começava a falar mais alto, misturando-se à curiosidade e a uma vontade antiga de se permitir sentir algo outra vez. Ela respirou fundo. — Eu vou — disse, antes que pudesse mudar de ideia. O sorriso de Laura foi lento, genuíno. — Ótimo. Te espero lá embaixo. Quando Laura se afastou, Helena sentou-se na cadeira, sentindo o coração bater forte. Sabia que aquele encontro mudaria alguma coisa. Talvez não naquela noite. Talvez não imediatamente. Mas a linha havia sido cruzada no momento em que dissera sim. Enquanto fechava a sala e seguia em direção ao elevador, Helena teve certeza de uma coisa: entre o desejo que crescia e o segredo que carregava, o equilíbrio começava a ruir. E ela não sabia por quanto tempo ainda conseguiria sustentar isso. ---






