"Às vezes acordo com o cheiro de cigarro em minhas roupas. Batom borrado. Dinheiro que eu não lembro de ter ganhado. E o mais estranho: um gosto de liberdade que não me pertence." Desde que saí do orfanato, tenho tentado levar uma vida simples. Trabalho à noite, estudo de dia. Me esforço para esquecer o vazio que me acompanha desde que me entendo por gente. Mas algo em mim está quebrado — ou escondido. Há lapsos de tempo que não consigo explicar. Momentos em que outra parte de mim assume o controle... e eu desapareço. Ela é forte. Corajosa. E sombria. Vive o que eu não ouso sequer imaginar. E volta sempre com os olhos cheios de algo que me assusta: poder. Não sei ainda quem — ou o quê — eu sou. Mas sei que tem algo crescendo dentro de mim. Algo que está acordando devagar, espreitando nas sombras. E quando essa coisa despertar por completo... não sei se ainda serei eu.
Ler maisA brisa salgada da praia acariciava meu rosto enquanto o carro avançava pela estrada de terra que nos levava para a casa de Lorenzo. O sol ainda estava baixo, tingindo o horizonte com tons dourados e rosados. Yves estava dormindo no banco de trás, aninhado nas cobertas, com os olhos fechados e os dedinhos ainda movendo-se, como se estivesse sonhando com algo tranquilo. Eu olhava para ele, e por um momento, tudo parecia perfeito. O mundo lá fora, com seu ritmo próprio, enquanto eu permanecia no meio dessa transição silenciosa, entre o que sou e o que posso ser. A viagem ainda não tinha tocado o fundo da minha alma, mas eu sabia que ela carregava algo de inevitável. Lorenzo estava ao volante, uma expressão relaxada no rosto, como se esse fosse apenas mais um fim de semana comum para ele. Mas algo em seus olhos parecia mais profundo. Ele sabia que essa viagem tinha um peso que eu ainda não entendia totalmente. — Está tudo bem, Marina? — ele perguntou, desviando os olhos da estrada par
Acordei com o som das ondas. A janela escancarada deixava entrar a brisa salgada, e o cheiro do mar parecia abraçar cada canto do quarto. Por um momento, fiquei ali, de olhos abertos, observando o teto branco com os feixes de luz dançando nas paredes. Yves dormia ao meu lado, seu corpinho pequeno enroscado em mim como se fôssemos parte um do outro.Ele sempre dorme assim, com a mãozinha no meu peito, como se quisesse garantir que meu coração continue batendo só pra ele.Beijei de leve sua testa, tentando não acordá-lo, e fui até a varanda. A praia se estendia dourada e deserta, o céu ainda com resquícios de rosa. Respirei fundo. O ar dali parecia diferente. Mais leve. Mais antigo.Ou talvez fosse eu que estivesse diferente.Desde que Lorenzo propôs a viagem, algo dentro de mim começou a se mexer. Não foi imediato, não foi gritante. Foi sutil, como a maré que recua devagar antes de avançar com força. E agora, aqui, longe da cidade, da rotina, do barulho... eu consigo escutar esse chama
Lorenzo saiu do escritório pouco depois, me deixando sozinha com os meus próprios pensamentos — o que talvez fosse mais perigoso do que qualquer conversa mal resolvida."Uma viagem", ele disse. Como se tirar uns dias fosse suficiente pra silenciar tudo que pulsa aqui dentro. Como se colocar quilômetros entre mim e a minha rotina bastasse pra entender o que, exatamente, está se desenrolando dentro de mim.Mas talvez ele tenha razão.Eu não lembro a última vez que pensei em mim mesma com calma. Tudo gira em torno de Yves — e ainda bem. Ele é a âncora, meu pequeno sol particular. Quando acordo com o choro dele, eu não reclamo. Quando perco o sono vigiando sua respiração, é como se minha própria alma encontrasse sentido.Mas sou mais do que mãe. E ultimamente, esse “mais” anda me assombrando.Penso em Lorenzo, na proposta, nas entrelinhas. Penso em como ele tem sido paciente, presente, cuidadoso. Mas penso, também, em como ele nunca força. Nunca invade. Sempre espera. E às vezes eu queria
A rua estava úmida pela garoa que insistia em cair desde o amanhecer. Eu quase não saí de casa. Quase. Yves teve uma crise de birra por não achar um dos desenhos preferidos dele e eu já estava com dor de cabeça antes das nove da manhã. Mas mesmo assim, mesmo com tudo me dizendo para ficar, vesti minha jaqueta jeans, amarrei o cabelo no alto da cabeça e saí. Sem maquiagem. Sem rumo definido. Só com vontade de silêncio — ou de qualquer coisa que se parecesse com isso.Meus pés seguiram sozinhos, como já faziam há semanas. Quando percebi, estava empurrando a porta da doceria.O som familiar do sino me trouxe uma sensação estranha de déjà-vu. Como se cada visita fosse uma repetição de outra versão de mim. A mesma mesa, perto da janela. O mesmo cheiro de café fresco misturado com baunilha e açúcar queimado. E claro, Liam, sempre atrás do balcão, com aquele sorriso de quem sabe de tudo e escolhe não dizer nada.— O de sempre? — ele perguntou, antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sempre.
Alec.Bonito demais para passar despercebido. Mas não era só isso. Ele tinha aquele tipo de beleza que incomoda — não pela arrogância, mas pela presença. O olhar profundo demais. O andar silencioso. A forma como parecia carregar um universo inteiro em silêncio, sem precisar justificar sua existência.Desde a primeira vez que o viu no estúdio, Marina sentiu que algo nela reagia de um jeito que não sabia nomear. Não era apenas desejo — embora fosse impossível negar a atração física. Era um incômodo mais sutil. Como se sua simples presença desarmasse suas defesas e a obrigasse a encarar tudo o que tentava esconder. Principalmente de si mesma.Havia algo no jeito como ele a observava... como se soubesse.Como se enxergasse não apenas Marina, mas Sara também.E por isso, naquela sexta-feira nublada, quando Leonardo lhe mandou uma mensagem casual — “Passa aqui mais tarde. Tem algo novo que quero te mostrar” —, Marina hesitou. Por segundos longos demais. Pensou em não ir. Em inventar uma des
~ Entre cafés, silêncios e algo que começa a florescer devagar demais para ser ignorado ~Era final de tarde quando saí com Yves enrolado no sling azul que Vanessa me ajudou a ajustar. A cidade estava fresca, com aquele ar de chuva que não veio, e o céu parecia um borrão pastel entre o cinza e o pêssego. Tinha colocado um casaco por cima da blusa leve e caminhava com passos calmos — mais para espairecer do que com algum destino definido.Mas, como sempre, acabei na confeitaria.Já não era mais apenas o cheiro do café ou a textura do pudim. Era o som da porta se abrindo. Era a cortina branca balançando discretamente. Era aquele espaço pequeno e seguro onde eu me reconhecia sem esforço.Yves dormia tranquilo, o rostinho encostado no meu peito, a respiração curtinha e quente. Liam sorriu quando me viu entrar.— Mesa de sempre?Assenti com um aceno pequeno e fui até o canto. O lugar parecia mais vazio que o habitual — ou talvez fosse só o mundo dentro de mim que estivesse espaçoso demais
Último capítulo