"Às vezes acordo com o cheiro de cigarro em minhas roupas. Batom borrado. Dinheiro que eu não lembro de ter ganhado. E o mais estranho: um gosto de liberdade que não me pertence." Desde que saí do orfanato, tenho tentado levar uma vida simples. Trabalho à noite, estudo de dia. Me esforço para esquecer o vazio que me acompanha desde que me entendo por gente. Mas algo em mim está quebrado — ou escondido. Há lapsos de tempo que não consigo explicar. Momentos em que outra parte de mim assume o controle... e eu desapareço. Ela é forte. Corajosa. E sombria. Vive o que eu não ouso sequer imaginar. E volta sempre com os olhos cheios de algo que me assusta: poder. Não sei ainda quem — ou o quê — eu sou. Mas sei que tem algo crescendo dentro de mim. Algo que está acordando devagar, espreitando nas sombras. E quando essa coisa despertar por completo... não sei se ainda serei eu.
Ler maisA primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.
Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa. Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali. A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir. — Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm. Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha. Foi ela de novo. A mulher que vive dentro de mim. A que desperta quando eu apago. Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desapareço. E quando volto, é como se tivesse vivido uma vida que não é minha. Mas as consequências... essas, ela sempre deixa pra mim. Queria contar pra alguém. Dizer que estou perdendo o controle. Que tenho medo. Mas como explicar ao mundo que há uma outra eu vivendo em segredo... ...e que, no fundo, eu a invejo? Sento na beira da cama e apoio o rosto nas mãos. Meus dedos tremem. Não sei se é medo ou cansaço. Talvez os dois. Fecho os olhos por um instante... e sou engolida pelas lembranças. O cheiro de sabão barato. O som das freiras andando de salto pelos corredores. As meninas brigando pelo cobertor mais quente. E eu... sempre no canto, com um livro no colo e a cabeça cheia de perguntas que ninguém queria responder. "Você não tem pais", disseram. "Mas vai crescer forte." Forte. Aprendi cedo que ser forte significava calar a dor. Significava não perguntar por que ninguém veio me buscar. Significava sorrir quando outra criança era adotada e eu ficava para trás. Lembro do dia em que fiz onze anos. Ganhei um bolo pequeno e uma vela torta. Fiz um pedido em silêncio. Não por uma família. Nem por amor. Pedi para deixar de sentir. Desde então, aprendi a me proteger com distância. A me esconder no barulho da rotina. A ocupar cada hora do dia para não ouvir o que sussurra dentro de mim à noite. Mas ela ouve. Ela sente. Ela existe. E quanto mais eu tento ignorar... mais forte ela se torna. Demoro um pouco até conseguir me levantar. Meu corpo pesa como se estivesse carregando algo invisível — ou como se ela ainda estivesse aqui, presa à minha pele. Me visto com pressa. Tento ignorar o gosto metálico na boca e o roxo escondido sob a gola da blusa. Um táxi passa, e eu aceno, quase com vergonha. O motorista me encara pelo retrovisor como se visse algo que nem eu sei o que é. Talvez ele veja. A cidade ainda dorme. O céu está pálido, tingido por um azul frio que corta a alma. Quando o carro para em frente ao meu prédio, fico um instante observando as janelas acesas. Não sei se alguém me espera. E sei que ninguém vai notar se eu sumir. Abro a porta do pequeno apartamento e sou recebida pelo silêncio. Meu lugar seguro — ou pelo menos era. Um quarto apertado, uma cozinha mal iluminada e pilhas de livros de enfermagem espalhados pela mesa. É a vida que construí sozinha. Mas às vezes parece que nem é minha. Jogo a bolsa no sofá e vou direto ao banheiro. Preciso ver meu rosto. Ver se ainda sou eu. O espelho devolve uma imagem borrada: rímel escorrido, cabelo bagunçado, olhos... estranhos. — O que você fez essa noite? — murmuro. A pergunta ecoa pelas paredes. Pego o celular. Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada perdida. Mas há algo estranho. Um número desconhecido. Uma foto. Um nome salvo como “Vermelho”. E um endereço. Meu coração dispara. Não faço ideia de quem seja. Mas alguma parte de mim... sabe. Sente. Ela esteve lá. E quer que eu vá também.A brisa salgada da praia acariciava meu rosto enquanto o carro avançava pela estrada de terra que nos levava para a casa de Lorenzo. O sol ainda estava baixo, tingindo o horizonte com tons dourados e rosados. Yves estava dormindo no banco de trás, aninhado nas cobertas, com os olhos fechados e os dedinhos ainda movendo-se, como se estivesse sonhando com algo tranquilo. Eu olhava para ele, e por um momento, tudo parecia perfeito. O mundo lá fora, com seu ritmo próprio, enquanto eu permanecia no meio dessa transição silenciosa, entre o que sou e o que posso ser. A viagem ainda não tinha tocado o fundo da minha alma, mas eu sabia que ela carregava algo de inevitável. Lorenzo estava ao volante, uma expressão relaxada no rosto, como se esse fosse apenas mais um fim de semana comum para ele. Mas algo em seus olhos parecia mais profundo. Ele sabia que essa viagem tinha um peso que eu ainda não entendia totalmente. — Está tudo bem, Marina? — ele perguntou, desviando os olhos da estrada par
Acordei com o som das ondas. A janela escancarada deixava entrar a brisa salgada, e o cheiro do mar parecia abraçar cada canto do quarto. Por um momento, fiquei ali, de olhos abertos, observando o teto branco com os feixes de luz dançando nas paredes. Yves dormia ao meu lado, seu corpinho pequeno enroscado em mim como se fôssemos parte um do outro.Ele sempre dorme assim, com a mãozinha no meu peito, como se quisesse garantir que meu coração continue batendo só pra ele.Beijei de leve sua testa, tentando não acordá-lo, e fui até a varanda. A praia se estendia dourada e deserta, o céu ainda com resquícios de rosa. Respirei fundo. O ar dali parecia diferente. Mais leve. Mais antigo.Ou talvez fosse eu que estivesse diferente.Desde que Lorenzo propôs a viagem, algo dentro de mim começou a se mexer. Não foi imediato, não foi gritante. Foi sutil, como a maré que recua devagar antes de avançar com força. E agora, aqui, longe da cidade, da rotina, do barulho... eu consigo escutar esse chama
Lorenzo saiu do escritório pouco depois, me deixando sozinha com os meus próprios pensamentos — o que talvez fosse mais perigoso do que qualquer conversa mal resolvida."Uma viagem", ele disse. Como se tirar uns dias fosse suficiente pra silenciar tudo que pulsa aqui dentro. Como se colocar quilômetros entre mim e a minha rotina bastasse pra entender o que, exatamente, está se desenrolando dentro de mim.Mas talvez ele tenha razão.Eu não lembro a última vez que pensei em mim mesma com calma. Tudo gira em torno de Yves — e ainda bem. Ele é a âncora, meu pequeno sol particular. Quando acordo com o choro dele, eu não reclamo. Quando perco o sono vigiando sua respiração, é como se minha própria alma encontrasse sentido.Mas sou mais do que mãe. E ultimamente, esse “mais” anda me assombrando.Penso em Lorenzo, na proposta, nas entrelinhas. Penso em como ele tem sido paciente, presente, cuidadoso. Mas penso, também, em como ele nunca força. Nunca invade. Sempre espera. E às vezes eu queria
A rua estava úmida pela garoa que insistia em cair desde o amanhecer. Eu quase não saí de casa. Quase. Yves teve uma crise de birra por não achar um dos desenhos preferidos dele e eu já estava com dor de cabeça antes das nove da manhã. Mas mesmo assim, mesmo com tudo me dizendo para ficar, vesti minha jaqueta jeans, amarrei o cabelo no alto da cabeça e saí. Sem maquiagem. Sem rumo definido. Só com vontade de silêncio — ou de qualquer coisa que se parecesse com isso.Meus pés seguiram sozinhos, como já faziam há semanas. Quando percebi, estava empurrando a porta da doceria.O som familiar do sino me trouxe uma sensação estranha de déjà-vu. Como se cada visita fosse uma repetição de outra versão de mim. A mesma mesa, perto da janela. O mesmo cheiro de café fresco misturado com baunilha e açúcar queimado. E claro, Liam, sempre atrás do balcão, com aquele sorriso de quem sabe de tudo e escolhe não dizer nada.— O de sempre? — ele perguntou, antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sempre.
Alec.Bonito demais para passar despercebido. Mas não era só isso. Ele tinha aquele tipo de beleza que incomoda — não pela arrogância, mas pela presença. O olhar profundo demais. O andar silencioso. A forma como parecia carregar um universo inteiro em silêncio, sem precisar justificar sua existência.Desde a primeira vez que o viu no estúdio, Marina sentiu que algo nela reagia de um jeito que não sabia nomear. Não era apenas desejo — embora fosse impossível negar a atração física. Era um incômodo mais sutil. Como se sua simples presença desarmasse suas defesas e a obrigasse a encarar tudo o que tentava esconder. Principalmente de si mesma.Havia algo no jeito como ele a observava... como se soubesse.Como se enxergasse não apenas Marina, mas Sara também.E por isso, naquela sexta-feira nublada, quando Leonardo lhe mandou uma mensagem casual — “Passa aqui mais tarde. Tem algo novo que quero te mostrar” —, Marina hesitou. Por segundos longos demais. Pensou em não ir. Em inventar uma des
~ Entre cafés, silêncios e algo que começa a florescer devagar demais para ser ignorado ~Era final de tarde quando saí com Yves enrolado no sling azul que Vanessa me ajudou a ajustar. A cidade estava fresca, com aquele ar de chuva que não veio, e o céu parecia um borrão pastel entre o cinza e o pêssego. Tinha colocado um casaco por cima da blusa leve e caminhava com passos calmos — mais para espairecer do que com algum destino definido.Mas, como sempre, acabei na confeitaria.Já não era mais apenas o cheiro do café ou a textura do pudim. Era o som da porta se abrindo. Era a cortina branca balançando discretamente. Era aquele espaço pequeno e seguro onde eu me reconhecia sem esforço.Yves dormia tranquilo, o rostinho encostado no meu peito, a respiração curtinha e quente. Liam sorriu quando me viu entrar.— Mesa de sempre?Assenti com um aceno pequeno e fui até o canto. O lugar parecia mais vazio que o habitual — ou talvez fosse só o mundo dentro de mim que estivesse espaçoso demais
Último capítulo