Capítulo 3 – O Jantar das Verdades

Quando o silêncio entre nós finalmente se estabilizou na praça, Guilherme respirou fundo, como se reunisse coragem para atravessar um abismo invisível. Ele passou a mão pelos cabelos — um gesto antigo, familiar demais — antes de falar:

— Júlia… eu sei que não tenho o direito de pedir nada. Mas eu preciso conversar com você. De verdade. Sem esconder. Sem fugir. Sem desculpas. — Ele hesitou, e, pela primeira vez desde que reapareceu, sua voz vacilou. — Você aceitaria jantar comigo hoje?

Eu o encarei por um longo momento, tentando entender se aquilo era uma tentativa de reabrir uma ferida… ou de finalmente suturá-la.

As palavras não vieram de imediato. Porque não era um convite simples. Era um convite para revisitar um passado que eu passei anos tentando varrer para longe.

Mas meu corpo, minha mente… e principalmente meu coração sabiam que eu precisava ouvir.

Precisava, para poder terminar.

— Onde? — perguntei, sem suavidade.

Ele inspirou como quem recebe uma chance inesperada.

— No restaurante de esquina, perto do lago. O mesmo… — ele parou, percebendo. — O mesmo em que jantamos no seu aniversário, lembra?

Eu lembrava. É claro que lembrava.

— Às oito? — ele completou.

Eu assenti.

Não por ele.

Mas por mim.

A noite caiu lentamente, pintando o céu em tons de azul profundo. Quando cheguei ao restaurante, as luzes amareladas refletiam nos vidros, criando um clima quente, quase acolhedor. Pessoas conversavam, taças tilintavam, e o mundo seguia como se nada estivesse acontecendo. Como se aquele não fosse o jantar que reabriria memórias adormecidas.

Guilherme já estava lá, sentado à mesa ao lado da janela. Ele levantou quando me viu entrar.

Eu parei por um instante, observando-o de longe.

Ele parecia… cansado.

Não fisicamente. Era um cansaço da alma. Daqueles que se acumulam ao longo dos anos, quando se vive carregando algo sem nunca falar.

Caminhei até a mesa.

Sentei-me.

E, durante alguns segundos, ninguém disse nada.

Até que ele respirou fundo.

— Obrigado por vir.

Eu apenas incline a cabeça.

— Júlia… — começou ele, mas não continuou de imediato. — Eu preciso te contar tudo. Desde o começo. Mesmo que doa. Mesmo que seja tarde.

— Então conte — respondi, firme. — Estou ouvindo.

Ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos, como quem se prepara para arrancar um peso de dentro de si.

— Era 18 de setembro de 2007. Eu lembro do dia como se estivesse acontecendo agora. Eram umas oito da noite. Eu estava no campus da faculdade. Havia um vento forte, e o céu estava pesado, prestes a chover — ele descreveu lentamente, como se enxergasse a cena à sua frente. — Eu estava com a Lauren.

Meu peito apertou.

Lauren.

O nome que eu nunca quis ouvir.

— Nós estávamos estudando para uma prova. Ou pelo menos era isso que deveria estar acontecendo — continuou ele, sem desviar os olhos dos meus. — Mas, Júlia… eu já vinha me confundindo há algum tempo. Não com meus sentimentos. Isso eu sabia. Eu amava você. — Ele pausou. — Eu amava você de uma forma que eu não conseguia nem explicar.

Doía ouvir.

— Mas eu estava… perdido. Eu tinha aquela sensação de estar ficando para trás. Todos ao meu redor faziam planos grandes, ousados. E eu… eu me sentia pequeno. Insuficiente. E a Lauren… ela aparecia sempre com alguma novidade, algum projeto, alguma oportunidade que parecia grande demais para ser ignorada.

Ele respirou fundo, passando a mão no rosto.

— Naquele dia, ela me contou que tinha conseguido uma vaga num intercâmbio na Argentina. Algo grande. Uma chance que muitos matariam para ter. Ela estava radiante. Feliz. E naquele momento… ela me beijou.

Eu fechei os olhos, como se pudesse bloquear a imagem.

Mas a imagem veio mesmo assim.

— Eu recuei. Eu disse que eu estava com você. Que eu te amava. Que aquilo estava errado — ele disse mais rápido, como se tentasse me alcançar antes que eu fugisse. — Mas ela insistiu. Disse que eu estava preso a uma cidade pequena, a uma vida pequena, a um amor que não me deixaria crescer. Ela disse que você era meu porto… mas eu precisava aprender a navegar.

Aquilo me atravessou.

Não por Lauren.

Mas porque parte de mim sabia que, na época, eu teria segurado ele firme. Eu teria impedido a tempestade. E talvez ele tenha sentido medo disso.

Ele continuou:

— Nós discutimos. Muito. Eu saí daquela sala atordoado. Então… eu liguei para você. — Ele olhou para mim com dor. — E você atendeu. E você estava sorrindo. Você me contou sobre um bolo que estava assando, e disse que queria que eu passasse lá depois para provar. E naquele momento… quando ouvi sua voz… eu travei. Eu não consegui dizer nada. Eu não consegui estragar a sua alegria.

Eu senti lágrimas ameaçando, mas respirei fundo, firme.

— Guilherme… — comecei, mas ele levantou uma mão, pedindo apenas um momento.

— A viagem dela estava marcada para o dia seguinte. 19 de setembro. Às 6h da manhã. — Ele fechou os olhos. — Eu fui para casa naquela noite tentando decidir se iria te contar. Eu fiquei andando pelo quarto, indo e voltando, como um louco. Eu escrevi uma mensagem pra você terminar comigo. Apaguei. Escrevi de novo. Apaguei. Peguei o telefone para te ligar. Travei. Eu chorei. De verdade. Eu me senti um covarde, um fracasso, uma mentira ambulante.

Ele respirou, a respiração falhando.

— Eu deveria ter ido até você. Olhado nos seus olhos. Contado tudo. Mas eu não consegui. Eu não tive coragem de ver você quebrar por minha causa.

Uma lágrima desceu pelo meu rosto, silenciosa.

Ele viu.

Sua voz partiu:

— E eu fiz a pior escolha possível. Eu fugi. Eu fui embora naquele voo. Sem me despedir. Sem explicar. Sem deixar nada. Eu deixei você dormindo, acreditando que o amor ainda estava lá… enquanto eu embarcava para outro país com alguém que não significava nem metade do que você significava pra mim.

Silêncio.

Silêncio pesado.

Dolorido.

Real.

Eu finalmente falei:

— Você me tirou o direito de escolher o que fazer com a verdade.

Ele desabou por dentro.

— Eu sei. — sua voz era um fio. — Eu sei, Júlia. E eu venho pagando por isso por doze anos. Não houve um único dia — um único — em que eu não pensasse em você. No que eu fiz. No que eu destruí.

Eu respirei fundo, enxugando as lágrimas que insistiam.

— Por que agora? — perguntei. — Por que voltar? Por que contar? Depois de tudo?

Ele engoliu seco.

— Porque eu finalmente entendi que o amor não é proteger alguém da dor. É confiar que essa pessoa é forte o suficiente para suportá-la. — Os olhos dele brilharam. — Eu devia ter confiado em você, Júlia. E eu não confiei.

Eu fiquei em silêncio por longos segundos.

Minutos talvez.

Até que senti algo dentro de mim… se desfazendo.

Algo que eu carreguei por anos.

Não era perdão.

Não ainda.

Era compreensão.

E isso, às vezes, é o começo.

— Guilherme — falei, suavemente — eu não sei ainda o que fazer com tudo isso. Eu preciso de tempo. Preciso sentir o que ficou. O que mudou. O que ainda existe… ou não existe mais.

Ele assentiu.

— Eu não vim pedir você de volta — ele disse. — Eu vim pedir para você não carregar esse peso sozinha nunca mais.

Eu fechei os olhos, respirando fundo.

E, pela primeira vez em doze anos…

Eu não sentia o buraco.

Eu sentia o encerramento se aproximando.

Devagar.

Mas finalmente.

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