Mundo ficciónIniciar sesiónJúlia apenas o encarou por alguns segundos. O restaurante era bonito demais para a dor que pairava entre eles. Luzes amareladas, mesas de madeira, uma música instrumental suave ao fundo. Tudo parecia cuidadosamente escolhido para acalmar — porém nada conseguia suavizar o que precisava ser dito ali.
Guilherme respirou fundo. Ele não tocava no garfo, não tocava na comida, apenas girava o copo de vinho entre os dedos, como se buscasse coragem lá no fundo do líquido vermelho. — Júlia… eu juro que tentei te esquecer. — sua voz saiu baixa, e não havia poesia nenhuma nela. Era apenas verdade crua. — Mas tem coisas que a gente não apaga. Ela ergueu o olhar devagar, firme, mas ferido. — Então por que foi tão fácil ir embora? As palavras caíram entre os dois como pedra. Guilherme fechou os olhos. Era hora. Ele precisava voltar. E ele voltou para 18 de setembro de 2007. Ele estava sentado na grama da faculdade, caderno aberto, livros espalhados, porém incapaz de ler sequer uma frase. No céu, o fim de tarde tingia o campus de tons dourados. Todos passavam rindo, conversando, vivendo — mas ele sentia que o mundo havia parado. Porque naquela manhã, Lauren havia colocado um envelope sobre sua mesa. “Intercâmbio de Arquitetura – Buenos Aires. Bolsa integral. Partida: 19 de setembro, às 6h.” Ele se lembrava da sensação exata: um soco no peito. Ele nunca havia pedido aquilo. Ele nunca havia planejado. E Lauren… Lauren só sorriu. — É o nosso futuro, Guilherme. É o que você merece — ela disse, deslizando os dedos no rosto dele, como se sua voz fosse mel — e você sabe que a Júlia não entenderia. A frase foi um golpe. Júlia. O amor que ele jamais deveria ter deixado. Mas Lauren sabia exatamente onde tocar. Porque Lauren não amava — ela calculava. — Eu não fazia ideia do intercâmbio, Guilherme. — disse Júlia, sua voz não era acusação… era dor pura. — Você não me contou nada. Você simplesmente desapareceu. Isso foi o pior. Ele olhou para ela, e seus olhos ficaram úmidos. — Eu sei. E é isso que me destrói até hoje. Eu devia ter te procurado. Eu devia ter ido até sua casa. Eu devia ter dito a verdade. Mas… — sua voz falhou — eu estava preso. Preso no medo. Preso no que eu achava que era responsabilidade. Preso nela. Júlia cerrou os dedos ao redor do guardanapo. — Guilherme… você era a minha vida. Eu teria entendido. Eu teria esperado. Eu teria lutado com você. Mas eu não tive escolha, porque você não me deu chance nenhuma. Ele inclinou-se para frente, o coração na garganta. — Eu sei. E se existir um arrependimento que me segue todos os dias… é esse. O silêncio entre eles não era vazio. Ele era cheio de tudo o que nunca foi dito. — Quando eu cheguei em Buenos Aires — Guilherme começou, com a voz cansada — eu estava perdido. Lauren parecia tão certa, tão confiante, tão controlada. Ela dizia que aquilo era o passo que precisávamos, que era a oportunidade da minha vida. E no começo… parecia verdade. Ele suspirou. — Eu concluí a faculdade lá. Arquitetura e Urbanismo. E logo comecei a trabalhar com restauração de prédios históricos. A cidade… Deus, Júlia, Buenos Aires é viva. É intensa. É arte em cada esquina. Seus olhos brilharam — mas não de felicidade. — E Lauren estava sempre lá. Mas nunca como amor… ela era como uma sombra. Me apoiava quando isso servia para ela. Me seduzia quando precisava me manter próximo. Mas no fundo… era controle. Era manipulação. Era como se cada escolha minha estivesse nas mãos dela. Júlia engoliu em seco. — Você amou ela? — perguntou, com uma honestidade que tremia. Guilherme demorou. Muito. — Não. — respondeu enfim. — Eu fui enredado por ela. Isso não é amor. É… dependência. Costume. Culpa. Júlia desviou o olhar, encarando a taça diante de si. — Enquanto isso eu… — ela riu, um riso pequeno e desolado. — Eu fiquei procurando respostas onde não havia. Eu pensei que você tivesse me esquecido. Ou que eu nunca tivesse sido suficiente. Eu passei anos acreditando que não era digna de amor. Guilherme sentiu aquilo como um tiro. — Júlia, pelo amor de Deus… você era tudo. Você sempre foi tudo. — Mas você não ficou. — ela respondeu. Ele respirou fundo, passando as mãos pelo rosto. — Criei a Dellfiori Arquitetura e Urbanismo quando terminei o curso. A cidade me abraçou. Eu me tornei alguém lá. Reconhecido. Respeitado. Mas toda vez que eu recebia um prêmio, toda vez que eu assinava um projeto, toda vez que eu via algo dar certo… eu pensava: “Júlia ia sorrir com isso.” E esse pensamento me quebrava. Porque eu não podia voltar. Porque eu acreditava — ou melhor, Lauren fazia questão de me convencer — que você me odiava. Que você tinha me esquecido. Que seguir em frente era o único caminho. Júlia levantou a cabeça, surpresa. — Ela disse isso? Guilherme assentiu, com um meio sorriso triste. — Ela dizia que você tinha outro. Que você tinha desistido de mim. Que eu era passado. — Eu nunca tive outro, Guilherme. — a voz dela era quase um sussurro. — Eu esperei por você. Por anos. Ele fechou os olhos. E chorou. Ali. Sem vergonha. Sem contenção. Lágrimas silenciosas, densas, arrependidas. Júlia não o tocou. Ela apenas observou. Porque ver alguém quebrar também é uma resposta. — O que fez você voltar? — ela perguntou enfim, depois que o silêncio os envolveu novamente. Ele ergueu o olhar. Havia uma melancolia linda nele. Quase poética. — Eu me olhei no espelho e não me reconheci mais. Eu era… bem-sucedido, respeitado, admirado — mas vazio. Eu tinha construído prédios, mas perdido a minha casa. Ele respirou. — E a minha casa sempre foi você. Júlia engoliu o ar de forma curta, como se ele tivesse ferido algo profundo nela. Mas antes que pudesse responder, Guilherme completou: — Eu sei que não tenho o direito de pedir nada. Eu sei que posso ter chegado tarde demais. Mas eu precisava… te contar a verdade. Por você. Por mim. Por tudo que um dia nós fomos. Ela o observou com uma tristeza antiga, conhecida. — Guilherme… eu não sei o que fazer com isso agora. — Eu também não. — ele admitiu. E pela primeira vez, estavam no mesmo lugar. Não no passado. Não na saudade. Mas no presente. Cru, imperfeito, vivo. Júlia respirou, longa, profunda. — Me dê tempo. Ele assentiu. — Eu te dou o tempo que você precisar. E pela primeira vez em doze anos… Eles não estavam se despedindo. Eles estavam recomeçando — ainda que do lado mais dolorido da verdade.






