O ano é 3099. O sol há muito deixou de iluminar a Terra. O planeta, agora um cemitério de gelo, abriga os últimos resquícios de uma civilização perdida, enterrada sob camadas de neve e silêncio. No alto, um complexo flutuante paira sobre o horizonte congelado, suas luzes pulsando com energia artificial em meio à vastidão branca. A humanidade foi substituída por máquinas e a lei dos controladores é absoluta: tudo que restou da era anterior deve ser erradicado.
E é nesse mundo sem sol que o Comandante TXK encontra o inesperado.
...
A luz azulada dos drones cortava o nevoeiro denso da gruta glacial. O ambiente era frio, estático, morto—ou pelo menos deveria ser. O Comandante TXK avançou com passos precisos, sua armadura de polímero luminescente refletindo as sombras projetadas pelo scanner de varredura. Os soldados ao seu redor mantinham as armas em prontidão, suas vozes sintetizadas comunicando dados em tempo real.
”Varredura térmica ativada.”
”Presença biológica detectada. Frequência não reconhecida.”
”Análise em andamento...”
TXK estreitou os olhos por trás do visor translúcido de seu capacete. A forma diante dele era... anômala. Não era um humano fossilizado, nem um cadáver congelado. Aquilo era algo mais.
”Relatório imediato.” Sua voz era firme, sem hesitação.
O técnico mais próximo tocou a tela holográfica em seu antebraço. Linhas de código percorreram a interface enquanto os sensores analisavam a criatura adormecida no gelo.
”Comandante, a estrutura biológica é híbrida. Presença de sequências genéticas não catalogadas na base de dados terrestre.”
TXK sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
”Especifique.”
”Amostras indicam composição não-humana. Concentração molecular sugere origem extraterrestre. Probabilidade de identidade alienígena: 89,7%.
Silêncio. Apenas o zumbido das máquinas e o som distante do vento gelado.
TXK olhou para a criatura envolta no gelo. Sua pele pálida quase translúcida refletia os feixes de luz, enquanto as escamas peroladas em seu dorso sugeriam algo que jamais deveria existir naquele planeta. Os longos cabelos ruivos flutuavam sob a camada cristalina como se estivessem suspensos no tempo.
Havia beleza naquela coisa. Uma beleza que o desconcertava.
”É possível que esta entidade seja um vestígio de um contato alienígena pré-cataclísmico?”
”Sim, Comandante. Se esta espécie pertencer a uma civilização extragaláctica e estiver sendo procurada, podemos estar diante de um risco de confronto interestelar.”
TXK franziu a testa. Seu protocolo era claro: erradicar qualquer resquício da humanidade anterior. Mas isso? Isso era outra coisa.
”Vitalidade da entidade?”
“ Sinais vitais fracos mas presentes.”
Um peso se formou no peito do Comandante. Se estivesse viva e fossem buscá-la, poderiam estar prestes a provocar uma guerra.
Ele respirou fundo.
”Continuem a análise. Quero um relatório completo em dois ciclos.”
Os soldados acenaram, ajustando os scanners. TXK permaneceu imóvel, observando aquele ser envolto no gelo. Algo dentro dele dizia que essa descoberta mudaria tudo.
Após observar a criatura uma última vez antes de tomar sua decisão pensou no protocolo que exigia a eliminação de qualquer resquício do passado, mas algo dentro dele hesitava. Se aquilo fosse um ser alienígena geneticamente modificado, poderia carregar respostas que os controladores jamais previram.
“ Preparem um caixão blindado para transporte imediato. Quero essa entidade levada para a base sob isolamento máximo. “
Os soldados sintetizados confirmaram a ordem, e em poucos minutos, a equipe técnica montou uma cápsula de contenção reforçada com ligas de polímero e campos eletromagnéticos. O gelo ao redor da criatura foi dissolvido cuidadosamente, revelando seu corpo esguio e a estranha simbiose entre sua pele e as escamas peroladas.
TXK acompanhou o transporte até a nave de evacuação, observando os drones ajustarem os estabilizadores gravitacionais. Assim que a cápsula foi lacrada, a aeronave ascendeu pelos céus metálicos, rumo à base flutuante.
Na estação orbital ‘Vigilância 09’, a cápsula blindada foi direcionada para o setor de pesquisa avançada. A base era operada exclusivamente por robôs de alta complexidade, cada um projetado para uma função específica:
DR-7 -Especialista em bioanálise, capaz de dissecar e reconstruir estruturas genéticas em tempo real.
HD5 – Um sistema neural artificial responsável por processar bilhões de dados simultaneamente e gerar previsões comportamentais.
XK-24 – Unidade médica avançada, adaptada para estabilizar organismos desconhecidos.
Sentinela Z-3 – Inteligência tática, encarregada de avaliar potenciais riscos da entidade e de sua origem.
Os autômatos ativaram os protocolos de estudo enquanto TXK acompanhava tudo do centro de comando. Ele estava exausto, mas sua mente se recusava a desligar. Dados preliminares começaram a aparecer em sua interface holográfica.
Era preciso desvendar o mistério do corpo congelado. Após horas de análise detalhada, TXK franziu a testa diante dos relatórios. A estrutura biológica da criatura estava conservada além do esperado. Apesar de a Terra ter se transformado em um túmulo congelado há séculos, não havia sinais de degradação celular compatíveis com 300 anos de exposição ao gelo.
“Isso é impossível…” murmurou para si mesmo.
Os cálculos eram claros: a entidade não era uma alienígena pura. Sua composição revelava sequências genéticas humanas altamente modificadas. O padrão indicava manipulação deliberada em nível molecular, como se alguém tivesse aperfeiçoado seu DNA para resistir ao tempo, ao frio e às mudanças ambientais extremas.
“Alguém a manipulou “
“Mas para quê? “
TXK revisou os registros históricos disponíveis. Antes da queda da humanidade, havia rumores sobre experimentos realizados em colônias orbitais distantes. Se essa mulher era o resultado dessas pesquisas, isso significava que outros poderiam ter existido. Mais ainda… como ela veio parar ali, no subsolo da Terra congelada?
A geografia do planeta não era a mesma desde os megaterremotos e tsunamis que destruíram as antigas civilizações. Qualquer vestígio do passado fora soterrado, rearranjado, esmagado sob quilômetros de gelo.
Então como ela foi parar naquele exato ponto, preservada como se tivesse sido deixada lá de propósito?
O comandante respirou fundo, encarando a cápsula blindada através do vidro reforçado da sala de observação. O que os controladores fariam ao descobrir isso? O protocolo era claro: eliminação. Mas se essa mulher era a chave para segredos enterrados da humanidade, descartá-la sem entender sua verdadeira origem seria um erro.
TXK tomou sua decisão.
“ Suspendam qualquer procedimento invasivo. A entidade permanecerá viva até que possamos compreender sua existência. “
As máquinas confirmaram a ordem. Pela primeira vez em muito tempo, TXK sabia que estava quebrando as diretrizes. Mas algo dizia que essa descoberta mudaria tudo.
E ele precisava saber a verdade.
...
A voz metálica do sistema ecoou pelo comunicador interno do Comandante TXK.
“Comandante, a entidade está apresentando sinais de atividade biológica aumentada. Relatório atualizado disponível na Sala de Análise.”
Ele ajustou os circuitos de sua armadura antes de se dirigir ao setor de pesquisas. Seus passos eram precisos, mecânicos, quase silenciosos nos corredores metálicos da base flutuante. Sua mente, por outro lado, estava inundada por perguntas que não deveria estar fazendo.
Assim que entrou na sala esterilizada, a equipe técnica já estava reunida. O brilho frio das telas holográficas refletia nas formas geométricas da cápsula blindada onde a entidade repousava. Ela parecia imóvel, sua pele pálida e lisa reluzindo sob a luz artificial. Seus longos cabelos ruivos estavam suspensos no líquido de preservação, como se o tempo não tivesse poder sobre ela. TXK aproximou-se, seus sensores captando cada detalhe. Mesmo através do visor translúcido de seu capacete, ele podia ver a perfeição incomum da criatura. Não havia marcas de decomposição, nem deformidades genéticas.
“Status? Sua voz saiu firme, impessoal.
DR-7, o especialista em bioanálise, projetou os dados no ar.
“A estrutura celular da entidade mantém estabilidade absoluta. Os sinais vitais permanecem fracos, mas consistentes. As últimas projeções indicam duas possibilidades: ela poderá despertar espontaneamente ou permanecer em hibernação por um período indefinido.”
HD-5, a inteligência neural da estação, acrescentou:
“Não há indícios de degradação genética. Os exames revelam uma idade biológica estimada de 25 anos, caso estivéssemos nos parâmetros da antiga Terra.
TXK analisou as informações minuciosamente. Seus olhos percorreram os gráficos de composição biológica projetados à sua frente. O que mais o intrigou foi a descoberta inesperada:
“Ela possui ovulação.”
Houve uma breve pausa no ambiente, como se até mesmo as inteligências artificiais processassem a informação com cautela.
XK-24, a unidade médica, finalizou o parecer:
“A estrutura dela é demasiadamente perfeita para ser uma espécie alienígena pura. A ausência de anomalias sugere um alto nível de manipulação genética. A hipótese mais plausível é que ela seja uma humana modificada por engenharia biológica avançada.”
A equipe registrou os dados finais antes de TXK ordenar:
“Todos fora.”
Os robôs obedeceram sem questionar. A porta lacrou-se atrás deles, deixando-o sozinho diante da cápsula.
TXK manteve os olhos fixos na figura adormecida. O líquido translúcido ao redor dela borbulhava levemente, indicando reações biológicas sutis.
Ele aproximou a mão enluvada do vidro, analisando cada detalhe. Seus sensores térmicos captavam a leve pulsação de energia dentro do corpo dela. Havia algo estranho. Algo que fazia seus circuitos reagirem de maneira anômala. Ele não sentia nada. Não sabia o que era emoção, desejo, medo ou compaixão. Seu cérebro havia sido reformulado quando seu corpo foi reconstruído. 60% de sua estrutura era robótica. Seu passado era apenas um arquivo corrompido. Seu histórico, apagado. Seu propósito, programado. E, ainda assim, ele não conseguia desviar os olhos daquela figura.
“Por quê?”
Havia algo nela que o perturbava. Que o incomodava. Ele nunca teve essas reações antes. Nenhum vestígio de humanidade restava em sua consciência. Mas agora, pela primeira vez, ele sentia uma espécie de... desconforto. Como se aquela presença ativasse um código oculto dentro dele.
Após alguns segundos de silêncio absoluto, TXK tomou uma decisão.
“K-J20.” Sua voz soou baixa, quase como um sussurro metálico.
Esse seria o nome dela. K-J20.
Ele não sabia por que escolheu nomeá-la. Era um desvio desnecessário do protocolo, mas ele o fez mesmo assim. Com um último olhar para a cápsula, TXK ativou os comandos de segurança e deixou a sala.
As portas se selaram atrás dele. Lá dentro, K-J20 permaneceu imóvel. Mas, por uma fração de segundo, um pulso sutil percorreu seus dedos submersos.
E então, o silêncio voltou.
...