A caixa branca sobre a pia parecia uma bomba-relógio.
A chuva tamborilava nas telhas como um aviso antigo, batendo ritmada como se contasse os segundos até o fim. O banheiro dos fundos era pequeno, mofado, frio — o tipo de lugar onde se enterra segredos. Isadora estava descalça. As mãos úmidas. O suor escorria pela nuca, mesmo com o corpo gelado. O cabelo preso de qualquer jeito. O visor do teste estava virado contra a parede. Como se ignorá-lo fosse o mesmo que desfazer tudo. Se for negativo, eu respiro. Esqueço. Apago ele da pele. Se for positivo… Não havia palavras. Só um vazio que pulsava no centro do peito. Ela estendeu a mão com dedos hesitantes e virou o teste. Duas linhas. Claras. Cruéis. Definitivas. O mundo não explodiu, mas foi como se tivesse desabado em silêncio. O teste escorregou da mão. O corpo dela afundou no chão frio, costas na parede, braços frouxos ao lado do corpo. Não chorou. Não gritou. Nem conseguiu pensar. Apenas encarava o vazio, como se a mente tivesse saído do corpo pra não presenciar aquilo. Grávida. Do homem que desapareceu depois de prometer que ninguém mais a machucaria. Do homem que beijou outra mulher sob aplausos — minutos depois de tocar sua alma. Buscou o celular. A mão tremia tanto que errou a senha três vezes. Abriu o chat com Enzo. A última mensagem dele estava ali como um tapa: “Descanse bem.” Digitou com os olhos marejando: “Preciso falar com você. É urgente.” A mensagem foi visualizada. E então… bloqueada. A tela tremeu. Ela tentou ligar. Uma, duas, três vezes. Nada. Voz de operadora. Frio. Silêncio. O celular caiu da mão e bateu no piso com um estalo seco — pequeno demais pro tamanho da dor que explodia por dentro. Ficou ali por minutos que pareciam horas. O som da chuva preenchia tudo. A respiração curta era o único som humano naquele espaço morto. *** Vestiu qualquer roupa. Chinelo de dedo. Casaco velho. Nem penteou o cabelo. Nem viu pra onde ia. Saiu pelos fundos da casa como uma fugitiva sem plano. A chuva colava nos cílios, escorria gelada pelas costas. Entrou numa farmácia esquecida, com cheiro de remédio velho e desinfetante barato. Comprou outro teste. Sabia que o primeiro já bastava. Mas queria se agarrar a alguma dúvida. A uma chance. A um erro de fábrica. Saiu e parou sob a marquise. Respirava mal. O coração estava fora de ritmo. Foi quando esbarrou. O corpo dela colidiu com outro — firme, alto, frio. — Me desculpe… — murmurou, abaixando o olhar. Uma mão segurou seu braço. Firme, sem ser violenta. Ela ergueu os olhos e viu o homem. Terno escuro. Cabelos perfeitamente penteados. Mas era o olhar que mais marcava — cinza, opaco, como metal molhado. Olhos que não olhavam. Avaliavam. Olhos de quem tem o poder de destruir. O instinto gritou sem explicação. — Você deveria tomar mais cuidado. — A voz dele era baixa. Grave. Quase sussurrada. Mas sem gentileza. Ele soltou o braço dela e entrou na farmácia como se nada tivesse acontecido. Isadora ficou ali, tremendo. Não sabia quem era ele. Mas sabia que não era alguém comum. *** Clara estava na cozinha quando ela voltou. — Menina, você tá pingando! Onde se meteu? — Eu… precisava confirmar uma coisa. Subiu direto. Trancou-se no quarto. Guardou o segundo teste na gaveta como se fosse veneno. Deitou com os olhos no teto, o corpo em posição fetal. O ventilador fazia um barulho irregular. A chuva soava distante agora — mas o eco da voz de Enzo não. “Ninguém nunca vai machucar você de novo.” Mentira. O enjoo voltou. Foi até o banheiro. Vomitou. Mas só saiu ar. E lágrimas. *** Mais tarde, com o rosto lavado, o cabelo preso e a alma colada com fita, desceu as escadas. Encontrou Clara na lavanderia. — Preciso falar com meu pai. Agora. — Aconteceu alguma coisa? Isadora respirou fundo. — Preciso saber se ele ainda pode fazer alguma coisa por mim. E caminhou. Cada passo mais firme. Cada batida do coração mais certa. Ela não sabia como Eduardo reagiria. Mas agora… carregava algo dentro de si que exigia luta. Ou… traria destruição.