POV: ISADORA
O céu ainda estava pálido quando Isadora empurrou a porta dos fundos com o ombro e pisou no jardim encharcado de orvalho. O ar da manhã tinha um gosto quase limpo — quase — porque nem mesmo o silêncio daquela hora conseguia apagar o gosto amargo que restara da noite anterior.
Segurava uma caneca de café requentado. Tinha passado a noite virando na cama, espremida entre lençóis duros demais para consolar um coração pesado. Não chorou. Não tinha chorado. Mas havia algo dentro do peito que doía como se tivesse gritado até perder a voz.
Sentou na mureta do jardim, com as pernas encolhidas sob o corpo e os olhos fixos no céu que clareava devagar. As palavras de Clarisse ainda martelavam sua cabeça. Agregada. Favor. Bastarda. Tantas formas diferentes de dizer que ela não pertencia àquele lugar — e mesmo assim, ali estava.
Pensou na mãe. A biológica. A desconhecida. A mulher que, segundo os boatos, havia sido uma prostituta. Nunca teve uma imagem clara dela, só fragmentos inventados por necessidade emocional. Às vezes, se perguntava: Será que ela teria me defendido? Ou me teria abandonado igual aos outros?
— Você sempre acorda tão cedo… ou é culpa da insônia da casa?
A voz fez seu coração acelerar.
Virou-se devagar e encontrou Enzo parado na lateral da varanda, encostado no batente da porta com um copo na mão e o cabelo bagunçado pelo vento da manhã. Vestia uma camiseta simples e uma calça de moletom escura. Pela primeira vez, ele parecia menos untado de poder e arrogância. Mais humano.
— Não dormi — respondeu, após um segundo de hesitação.
Enzo se aproximou, passos lentos, como quem respeitava o espaço. Mas ainda assim, se movia com a confiança silenciosa de quem sabia que, no fim, ocuparia todo o ambiente.
— Notei — disse ele. — Você parecia… abatida ontem.
Isadora franziu o cenho, o estômago apertando. Ele reparava?
— Foi só cansaço — tentou mentir, encolhendo os ombros.
Enzo assentiu, mas os olhos dele — um castanho âmbar quase dourado com o sol nascendo — ficaram cravados nos dela.
— Você não merece ser tratada daquele jeito. Nem ontem. Nem nunca.
Foram só palavras. Mas acertaram onde mais doía.
Ela desviou o olhar. A caneca tremia levemente em sua mão. Era um gesto pequeno, quase imperceptível, mas Enzo percebeu. Se sentou ao lado dela, deixando uma distância segura entre os dois, e estendeu seu próprio café.
— Quer? O meu está melhor. Prometo.
Ela sorriu de leve, sem graça, e recusou com um aceno.
— Sempre achei você diferente — comentou ele, após um breve silêncio. — Quietinha. Mas observadora. Como se soubesse mais do que deixasse transparecer.
Isadora ergueu a sobrancelha.
— Está debochando?
— Não. — O sorriso dele era leve. Charmoso. Quente o bastante para derreter qualquer desconfiança — se ela tivesse alguma. — Só dizendo o que deveria ter dito há muito tempo.
Ela não sabia o que dizer. Estava acostumada a palavras afiadas, ordens secas, risos falsos. Aquilo era novo. Era gentil. Era perigoso.
— Se você tivesse um dia só para você… o que faria?
Isadora piscou, surpresa com a pergunta. Pensou por alguns segundos antes de responder:
— Fugiria.
Ele riu. Um som baixo, verdadeiro.
— Então foge. Pelo menos hoje. Comigo.
Ela o encarou, desconfiada.
— Como assim?
— Me dá um presente de despedida. Quero passar umas horas com você antes da minha sentença final.
— Sentença?
Enzo respirou fundo e soltou devagar, como se o ar estivesse preso há dias.
— Vou me casar com a Valentina.
Isadora sentiu algo revirar no estômago. Era esperado. Era lógico. E mesmo assim… doía. Por que doía?
— Parabéns, então — disse, seca.
— Não é bem assim — ele respondeu, amargo. — É… necessário. Político. A união das duas famílias. Essas coisas de gente podre.
Ela se calou. O silêncio era seu abrigo.
— Antes disso, só queria… respirar. Sentir que sou alguém. E não um herdeiro programado para obedecer.
— Por que está me contando isso? — perguntou ela, sem conseguir disfarçar a confusão.
Ele virou o rosto devagar e a olhou como se a enxergasse pela primeira vez.
— Porque você é a única pessoa de verdade nessa casa.
Ela engoliu seco.
Pela primeira vez em muito tempo, se sentiu vista.
— Vamos até a casa de praia. Preciso buscar umas coisas que deixei lá. Vem comigo?
Isadora hesitou.
— Clarisse vai me matar.
— Ninguém vai saber. Te deixo de volta antes que percebam. Vai ser rápido. Prometo.
O impulso de recusar estava ali, mas… também estava o desejo desesperado de sair. Nem que fosse por algumas horas. Nem que fosse com Enzo.
Vestiu um casaco velho, prendeu o cabelo num coque alto e entrou no carro com ele.
A estrada era tranquila, ladeada por árvores altas e o som baixo de uma música antiga preenchia o espaço entre os dois. Isadora não reconhecia a canção, mas gostou da melodia lenta.
— Gosta do mar? — ele perguntou, sem desviar os olhos da estrada.
— Nunca vi de perto — confessou.
Ele a olhou de relance, com um brilho estranho nos olhos.
— Você merece ver o mundo. Merece tudo o que não te deram.
Ela virou o rosto para a janela, sentindo os olhos arderem. Ninguém falava com ela daquele jeito. Ninguém nunca disse que ela merecia qualquer coisa.
***
A casa de praia era afastada. Bonita, mas com um silêncio que parecia crescer em volta. Isadora saiu do carro devagar, observando tudo.
Enzo abriu a porta da frente com naturalidade. Pegou duas garrafas de água e lhe entregou uma.
— Vem. Vou te mostrar algo.
Ela o seguiu por corredores amplos, decorados com móveis rústicos e janelas enormes. O som das ondas distantes quebrava o silêncio.
Até que ele abriu a porta de um quarto de hóspedes.
Isadora parou na soleira.
— Pode entrar. Só quero conversar.
Ela deu dois passos hesitantes. Ele fechou a porta atrás deles.
O ar mudou.
Ela percebeu na hora.
Enzo deu um passo à frente. Os olhos estavam sérios agora. Não havia mais sorrisos.
— Eu preciso de você, Isadora.
Ela não soube o que responder.
Só sentiu o coração acelerar — e algo invisível, mas muito perigoso, rastejando no ar.
POV ISADORAO quarto era bonito demais. Janelas abertas, cortinas esvoaçando com o vento que trazia o cheiro salgado do mar. Lençóis brancos, colchão macio, uma poltrona azul ao canto e um armário de madeira escura entalhada com arabescos.Mas apesar da beleza, o silêncio era o que mais preenchia o espaço. Um silêncio denso. Suspenso. Quase perigoso.Isadora estava sentada na beirada da cama, as mãos espremendo a barra do casaco. Ainda não entendia por que estava ali. Por que Enzo a tinha trazido para aquele lugar afastado? Por que olhava para ela daquele jeito?Ele estava próximo, mas não muito. Encostado na parede, observando-a com uma calma que beirava o reverente. Como se tivesse medo de espantá-la.— Está tudo bem? — ele perguntou, a voz baixa, quebrando a tensão como quem quebra gelo com a ponta dos dedos.Ela hesitou, sem saber como responder. Não sabia se estava tudo bem. Não sabia de nada, na verdade. Só sentia o peito apertado, os batimentos fora de ritmo.— Você não precisa
POV ISADORAAs flores eram brancas.Cada arranjo cuidadosamente distribuído pela sala principal exalava um perfume doce e quase enjoativo. As taças de cristal, empilhadas em uma torre reluzente sobre a mesa de mármore, captavam a luz dourada do lustre e a multiplicavam em pequenos brilhos espalhados pelo ambiente. Parecia uma cena de celebração. Um evento de prestígio.Isadora entrou com passos contidos, a bandeja vazia presa entre os dedos, tentando esconder o leve tremor que ainda insistia em seu corpo. Dormira pouco — ou quase nada. A lembrança do toque de Enzo ainda ardia sob a pele, como se o corpo dela se recusasse a aceitar que tudo aquilo tivesse acabado sem uma palavra.Ele tinha sumido. E agora, ali, o mundo parecia seguir sem ela.— Pegue a bandeja com o champanhe. E sorria. — Clarisse apareceu ao lado, o sorriso polido colado ao rosto como uma máscara de porcelana. O tom, porém, era cortante. — Está pálida. Vai assustar os convidados.Isadora assentiu e caminhou até a mesa
POV ISADORAA caixa branca sobre a pia parecia uma bomba-relógio.A chuva batia nas telhas com uma cadência hipnótica e cruel, como se marcasse os segundos até o fim de tudo. O banheiro dos fundos era frio, pequeno e mal iluminado, mas oferecia a única privacidade que Isadora encontrara desde o anúncio devastador na noite anterior.Estava descalça, o cabelo preso às pressas e as mãos úmidas de suor, embora sentisse frio. O teste ainda estava virado, o visor contra a parede, como se ela quisesse fingir que não dependia daquilo. Que não fosse real.Se for negativo, eu respiro. Finjo que ontem nunca aconteceu. Esqueço que acreditei em alguém como Enzo.O coração martelava alto como se quisesse sair pela garganta.Se for positivo… eu…Ela não conseguiu terminar o pensamento. Só sabia que não estava pronta.O tempo pareceu parar quando estendeu a mão e virou o teste devagar, os olhos se ajustando ao visor digital ainda embaçado pela umidade do ambiente.Duas linhas.Nítidas. Cruéis. Inques
POV ISADORA— Isa, espera — a voz de Clara veio apressada, os passos atrás dela ecoando pelo corredor de mármore. — Seu pai não está sozinho. Tem… tem visita. Um Bianchi.Ela parou. Só por um instante. Só até o nome cortar o ar como uma lâmina afiada. Bianchi.O sangue pareceu congelar por um segundo. Ela parou, dando um passo para trás, o ar a sufocando. Enzo? Enzo estava aqui?Tentou conter a tremedeira. Seria bom vê-lo. Ele precisava saber e tomar as responsabilidades.— Mesmo assim — disse, com a voz mais firme do que esperava —, ele vai ouvir. Vai ter que ouvir.***O corredor até o escritório parecia mais longo naquela noite. Cada passo ecoava com um peso que não vinha só das solas dos pés. Vinha das palavras que carregava no peito. Das mágoas que vinham se acumulando há vinte anos.Ela não bateu. Abriu a porta.O escritório era como ela lembrava: madeira escura por todos os lados, cheiro de couro e tabaco, estante com livros que ninguém lia. O relógio de parede fazia tic-tac co
POV ISADORAO silêncio depois da tempestade era quase insuportável.As penas do travesseiro flutuavam no ar, girando lentamente como restos de uma batalha que ninguém viu. O abajur tombado piscava intermitente, espalhando uma luz trêmula sobre os livros jogados ao chão, alguns ainda abertos, outros rasgados na lombada. Havia cacos de vidro perto da porta. E, no centro de tudo, sentada com as pernas dobradas e os ombros encostados na parede, Isadora ainda segurava o teste de gravidez entre os dedos.As duas linhas ali pareciam zombar dela. Mas não havia mais lágrimas.O rosto estava seco. A boca firme. Os olhos duros como pedra. A dor já não queimava — agora, congelava.Se ninguém vai me proteger… então que me temam.Ela pensou em Matteo.Não no primo sedutor que todos murmuravam à sombra do nome Bianchi. Pensou no homem que a olhou no escritório sem dó, sem escárnio, sem pena. Apenas… a observou. Como quem assiste uma tragédia acontecer e espera, curioso, para ver se o que resta dos d
O portão era alto demais para alguém como Isadora.Imponente, blindado, vigiado. Tudo naquela mansão dizia: você não pertence aqui. Mas Isadora não se mexeu. Os braços cruzados sobre o peito, o vento levantando as pontas do vestido vermelho contra suas pernas. O salto firme batia contra o chão de pedra, ecoando como um desafio.Dois seguranças se aproximaram com lentidão, os olhos varrendo-a dos pés à cabeça.— Volta pra onde veio, moça. Essa casa não é de visita.Ela não respondeu de imediato.— Preciso falar com Matteo Bianchi.Um deles riu, seco.— E eu preciso de férias. Ninguém entra sem hora marcada. Ele não está.— Está — respondeu ela, com firmeza. — E vai me ouvir.O segundo segurança deu um passo à frente, já com a mão no braço dela, pronto para empurrá-la para fora. Foi quando eles pararam.Congelaram, como cães farejando o dono antes da bronca.Isadora sentiu a presença antes de vê-lo. Aquela mudança súbita no ar, como quando a tempestade se aproxima em silêncio. Matteo.V
O som da chuva era um tambor surdo sobre o teto do carro. Cada batida parecia cravar ainda mais a ansiedade na pele de Isadora, enquanto o mundo além das janelas se dissolvia em borrões cinzentos. O motor zumbia de maneira constante, preenchendo o silêncio espesso entre ela e Matteo.Ela mantinha as mãos unidas no colo, os dedos entrelaçados com força para evitar que tremessem. Cada respiração era medida. Cada batida do coração, uma contagem regressiva para algo que ela não conseguia controlar.Matteo dirigia como se nada pudesse tocá-lo. Nenhuma hesitação, nenhum sinal de tensão. Era como um navio cortando mares revoltos sem alterar o curso.Por trás da máscara de calma, Isadora sabia: ele era tão perigoso quanto o que a esperava do outro lado.Pelo retrovisor, os olhos cinza-escuros dele a fitaram por um breve instante. Havia algo ali — uma percepção afiada, uma expectativa muda.Quando ele falou, a voz foi firme, cortando o ar pesado do carro.— Não abaixe a cabeça. Nem para ela.O
A chuva havia parado quando o carro retornou à mansão dos Diniz, mas o mundo parecia ainda mais cinzento do que antes.Isadora desceu com passos contidos, o vestido colado ao corpo pela umidade do ar. Os portões se fecharam atrás dela com um estalo pesado — um som que mais parecia uma sentença. Dentro da casa, a luz dourada dos lustres lançava sombras traiçoeiras sobre as paredes. E logo na entrada, como se tivesse esperado a oportunidade perfeita para atacar, Clarisse apareceu.— Onde você estava? — a voz dela soou doce como veneno. — Fugiu pra rodar bolsinha na rua?Os olhos de Isadora cruzaram os dela. Não tremeram. Não vacilaram.— Fui apenas… respirar.Clarisse apertou a boca numa linha fina, mas não respondeu. Apenas se virou, o robe de seda esvoaçando, como se Isadora fosse indigno até para um insulto completo.O som de saltos apressados ecoou no corredor. Valentina surgiu com a energia de quem se achava a dona do mundo. Até ver Isadora.Ela parou no meio do caminho, o sorriso