O céu ainda estava pálido quando Isadora empurrou a porta dos fundos com o ombro. O jardim estava encharcado de orvalho, o ar tinha gosto de silêncio — quase puro, quase leve. Quase. Porque nada ali jamais era realmente limpo.
Na mão, uma caneca de café requentado. Na alma, um vazio que nem mil cafés quentes resolveriam.
Passara a noite virando na cama, espremida entre lençóis duros e pensamentos piores. Não chorou. Mas havia algo nela que doía como se tivesse gritado por dentro até o ar acabar.
Sentou-se na mureta do jardim com as pernas encolhidas e o olhar perdido num céu que ainda hesitava em amanhecer. As palavras da noite anterior martelavam: agregada, favor, bastarda. Tantas formas de dizer o mesmo: você não pertence.
Pensou na mãe — a que nunca conheceu. Diziam que era uma prostituta de estrada. Será que teria a defendido? Ou abandonado igual a todos os outros?
— Você sempre acorda tão cedo… ou é a insônia coletiva dessa casa?
A voz fez seu corpo enrijecer.
Virou devagar e viu Enzo encostado no batente da porta. Camiseta básica, moletom escuro, cabelo bagunçado. Pela primeira vez, parecia menos herdeiro e mais humano.
— Não dormi — respondeu, depois de uma pausa longa demais.
Ele se aproximou com passos lentos, como quem respeita um território que não é seu — mas entra mesmo assim.
— Percebi. Você estava… abatida ontem.
Ela desviou os olhos. O estômago apertou.
— Cansaço — mentiu.
Enzo não comentou. Só observou. Os olhos âmbar refletiam o sol nascente como ouro antigo.
— Você não merece aquilo. Nem ontem, nem nunca.
Simples. Direto. Como um golpe bem dado.
A caneca tremia na mão dela. Discretamente. Mas ele percebeu.
Sentou-se ao lado, deixando espaço entre os dois, e estendeu seu copo.
— Quer o meu? Está menos ruim. Juro.
Ela sorriu de leve, negando com a cabeça.
— Sempre achei você diferente — disse ele, após um silêncio confortável. — Quietinha. Mas cheia de fogo por dentro. Como uma bomba que ninguém vê chegando.
Ela o olhou com uma sobrancelha arqueada.
— Isso foi um elogio?
— Foi. Um raro — ele respondeu com um sorriso que parecia derreter qualquer defesa. — Devia me agradecer.
Ela não respondeu. Estava acostumada a ordens, não a gentilezas.
— Se tivesse um único dia só pra você… o que faria?
A pergunta a pegou de surpresa.
— Fugiria — respondeu, sem pensar.
Ele riu. De verdade. Um som bonito.
— Então foge. Hoje. Comigo.
Ela o encarou.
— Como assim?
— Vamos sair daqui. Um dia. Só nós dois. Sem essa casa. Sem Clarisse. Sem máscaras.
— Isso é loucura.
— É liberdade. Temporária, eu sei. Mas liberdade.
Ela hesitou. E ele completou:
— Me dá um presente de despedida. Antes da minha sentença final.
— Sentença?
— Vou me casar com a Valentina.
A frase caiu como veneno no café.
Era esperado. Mas mesmo assim… queimou.
— Parabéns — ela disse, seca.
— Não é por amor. É por conveniência. Jogo sujo de gente rica e podre.
Ela ficou em silêncio. Ele encarou o horizonte, a voz mais baixa:
— Só queria lembrar como é... respirar.
— Por que está me contando isso?
— Porque você é a única pessoa verdadeira aqui dentro.
E naquele momento, ela se sentiu… vista. De verdade.
— Vamos até a casa de praia. Preciso pegar umas coisas. Te deixo de volta antes que notem.
Ela hesitou.
— Se Clarisse descobrir…
— Ninguém vai saber. Confia em mim.
Confiar? Isadora não confiava em ninguém.
Mas naquele instante, queria desaparecer do mundo — e ele estava abrindo a porta.
Vestiu um casaco velho, prendeu o cabelo num coque torto e entrou no carro.
***
A estrada era calma, ladeada por árvores e preenchida pelo som suave de uma música antiga. Isadora não reconhecia a canção, mas o tom melancólico parecia entender o que ela não dizia.
— Já viu o mar de perto?
Ela negou.
— Vai gostar. É grande. Livre. Incontrolável. Um pouco como você.
Ela sorriu, surpresa.
— Você não me conhece.
— Não. Mas queria conhecer.
E havia verdade ali.
***
A casa de praia era bonita, isolada, cercada de silêncio e sal.
Enzo abriu a porta, pegou duas garrafinhas de água e entregou uma.
— Vem. Quero te mostrar uma coisa.
Ela o seguiu por corredores com janelas enormes e cheiros de madeira. O som das ondas preenchia o vazio.
Até que ele abriu a porta de um quarto.
Ela parou na entrada.
— Pode entrar. Só quero conversar.
Dois passos. A porta se fechou atrás.
O ar mudou.
O sorriso também.
— Eu preciso de você, Isadora.
Ela sentiu. Não soube o quê. Mas soube.
O coração acelerou. A pele arrepiou. Algo invisível, denso e perigoso rastejava no ar.
E ela sabia: aquele momento ia mudar tudo.