2: Mar, Café e Veneno

O céu ainda estava pálido quando Isadora empurrou a porta dos fundos com o ombro. O jardim estava encharcado de orvalho, o ar tinha gosto de silêncio — quase puro, quase leve. Quase. Porque nada ali jamais era realmente limpo.

Na mão, uma caneca de café requentado. Na alma, um vazio que nem mil cafés quentes resolveriam.

Passara a noite virando na cama, espremida entre lençóis duros e pensamentos piores. Não chorou. Mas havia algo nela que doía como se tivesse gritado por dentro até o ar acabar.

Sentou-se na mureta do jardim com as pernas encolhidas e o olhar perdido num céu que ainda hesitava em amanhecer. As palavras da noite anterior martelavam: agregada, favor, bastarda. Tantas formas de dizer o mesmo: você não pertence.

Pensou na mãe — a que nunca conheceu. Diziam que era uma prostituta de estrada. Será que teria a defendido? Ou abandonado igual a todos os outros?

— Você sempre acorda tão cedo… ou é a insônia coletiva dessa casa?

A voz fez seu corpo enrijecer.

Virou devagar e viu Enzo encostado no batente da porta. Camiseta básica, moletom escuro, cabelo bagunçado. Pela primeira vez, parecia menos herdeiro e mais humano.

— Não dormi — respondeu, depois de uma pausa longa demais.

Ele se aproximou com passos lentos, como quem respeita um território que não é seu — mas entra mesmo assim.

— Percebi. Você estava… abatida ontem.

Ela desviou os olhos. O estômago apertou.

— Cansaço — mentiu.

Enzo não comentou. Só observou. Os olhos âmbar refletiam o sol nascente como ouro antigo.

— Você não merece aquilo. Nem ontem, nem nunca.

Simples. Direto. Como um golpe bem dado.

A caneca tremia na mão dela. Discretamente. Mas ele percebeu.

Sentou-se ao lado, deixando espaço entre os dois, e estendeu seu copo.

— Quer o meu? Está menos ruim. Juro.

Ela sorriu de leve, negando com a cabeça.

— Sempre achei você diferente — disse ele, após um silêncio confortável. — Quietinha. Mas cheia de fogo por dentro. Como uma bomba que ninguém vê chegando.

Ela o olhou com uma sobrancelha arqueada.

— Isso foi um elogio?

— Foi. Um raro — ele respondeu com um sorriso que parecia derreter qualquer defesa. — Devia me agradecer.

Ela não respondeu. Estava acostumada a ordens, não a gentilezas.

— Se tivesse um único dia só pra você… o que faria?

A pergunta a pegou de surpresa.

— Fugiria — respondeu, sem pensar.

Ele riu. De verdade. Um som bonito.

— Então foge. Hoje. Comigo.

Ela o encarou.

— Como assim?

— Vamos sair daqui. Um dia. Só nós dois. Sem essa casa. Sem Clarisse. Sem máscaras.

— Isso é loucura.

— É liberdade. Temporária, eu sei. Mas liberdade.

Ela hesitou. E ele completou:

— Me dá um presente de despedida. Antes da minha sentença final.

— Sentença?

— Vou me casar com a Valentina.

A frase caiu como veneno no café.

Era esperado. Mas mesmo assim… queimou.

— Parabéns — ela disse, seca.

— Não é por amor. É por conveniência. Jogo sujo de gente rica e podre.

Ela ficou em silêncio. Ele encarou o horizonte, a voz mais baixa:

— Só queria lembrar como é... respirar.

— Por que está me contando isso?

— Porque você é a única pessoa verdadeira aqui dentro.

E naquele momento, ela se sentiu… vista. De verdade.

— Vamos até a casa de praia. Preciso pegar umas coisas. Te deixo de volta antes que notem.

Ela hesitou.

— Se Clarisse descobrir…

— Ninguém vai saber. Confia em mim.

Confiar? Isadora não confiava em ninguém.

Mas naquele instante, queria desaparecer do mundo — e ele estava abrindo a porta.

Vestiu um casaco velho, prendeu o cabelo num coque torto e entrou no carro.

***

A estrada era calma, ladeada por árvores e preenchida pelo som suave de uma música antiga. Isadora não reconhecia a canção, mas o tom melancólico parecia entender o que ela não dizia.

— Já viu o mar de perto?

Ela negou.

— Vai gostar. É grande. Livre. Incontrolável. Um pouco como você.

Ela sorriu, surpresa.

— Você não me conhece.

— Não. Mas queria conhecer.

E havia verdade ali.

***

A casa de praia era bonita, isolada, cercada de silêncio e sal.

Enzo abriu a porta, pegou duas garrafinhas de água e entregou uma.

— Vem. Quero te mostrar uma coisa.

Ela o seguiu por corredores com janelas enormes e cheiros de madeira. O som das ondas preenchia o vazio.

Até que ele abriu a porta de um quarto.

Ela parou na entrada.

— Pode entrar. Só quero conversar.

Dois passos. A porta se fechou atrás.

O ar mudou.

O sorriso também.

— Eu preciso de você, Isadora.

Ela sentiu. Não soube o quê. Mas soube.

O coração acelerou. A pele arrepiou. Algo invisível, denso e perigoso rastejava no ar.

E ela sabia: aquele momento ia mudar tudo.

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