POV ISADORA
O quarto era bonito demais. Janelas abertas, cortinas esvoaçando com o vento que trazia o cheiro salgado do mar. Lençóis brancos, colchão macio, uma poltrona azul ao canto e um armário de madeira escura entalhada com arabescos.
Mas apesar da beleza, o silêncio era o que mais preenchia o espaço. Um silêncio denso. Suspenso. Quase perigoso.
Isadora estava sentada na beirada da cama, as mãos espremendo a barra do casaco. Ainda não entendia por que estava ali. Por que Enzo a tinha trazido para aquele lugar afastado? Por que olhava para ela daquele jeito?
Ele estava próximo, mas não muito. Encostado na parede, observando-a com uma calma que beirava o reverente. Como se tivesse medo de espantá-la.
— Está tudo bem? — ele perguntou, a voz baixa, quebrando a tensão como quem quebra gelo com a ponta dos dedos.
Ela hesitou, sem saber como responder. Não sabia se estava tudo bem. Não sabia de nada, na verdade. Só sentia o peito apertado, os batimentos fora de ritmo.
— Você não precisa ficar se tiver com medo — ele continuou. — Eu só… queria conversar. Longe do barulho. Da hipocrisia daquela casa.
Ela assentiu, engolindo em seco.
Enzo deu dois passos à frente e se sentou ao lado dela. Os ombros largos, os cabelos levemente bagunçados, os olhos intensos com um brilho de exaustão — ou sedução. Talvez os dois.
— Às vezes, eu penso que estou vivendo a vida de outra pessoa — ele começou. — Que tudo já veio decidido, planejado, engessado… e eu só tô ali, fazendo figuração.
Isadora o olhou de lado, sem saber como reagir. Ele parecia genuinamente abatido.
— A Valentina é linda. Inteligente. Mas… é política. Meu noivado com ela não tem nada a ver com sentimento. É sobre manter o sangue limpo. As alianças intactas.
Ela não disse nada.
— Ninguém me vê, Isadora. Nem meu pai. Nem minha mãe. Nem Valentina. Eles enxergam o que querem: o nome, o sobrenome, o poder. Mas você… você olha de verdade.
O coração dela disparou. Porque ele estava dizendo exatamente o que ela sempre quis ouvir. Que ela não era invisível. Que alguém, enfim, a via.
Enzo estendeu a mão devagar e tocou os dedos dela. Os movimentos eram lentos, quase tímidos. Como se ele soubesse que, se fosse rápido demais, ela fugiria.
— Você escuta sem julgar. Fica em silêncio, mas está presente. Você é tudo o que eu deveria querer… mas não posso.
Isadora prendeu a respiração.
Os olhos de Enzo estavam nos dela. Ele se aproximou mais, e ela não recuou. As mãos dele seguraram seu rosto com uma leveza quase contraditória àquele homem que sempre fora duro, confiante, inalcançável.
E então, ele a beijou.
O toque foi suave no início. Um sussurro de desejo contido. Mas logo se intensificou, como se ele estivesse se desfazendo nela, como se o mundo todo estivesse naquele momento. Naquele beijo.
Isadora se entregou.
Seu corpo, tão acostumado ao gelo, derreteu sob o calor daquele gesto. Era terno, era intenso. Era carregado de promessas que ela nem sabia que precisava.
Quando os lábios se afastaram, ele encostou a testa na dela.
— Eu precisava disso.
Ela também.
Enzo a puxou com cuidado até o centro da cama, como se conduzir uma dança. Cada movimento dele era gentil. As mãos percorriam seus braços, suas costas, como se pedissem permissão a cada segundo.
— Você é linda — ele sussurrou. — Ninguém nunca vai machucar você de novo.
Ela acreditou.
As roupas caíram devagar, com hesitação e desejo misturados. Era a primeira vez dela. E mesmo sem dizer isso em voz alta, Enzo parecia saber. Tratou cada toque como uma oferenda, cada carícia como um segredo compartilhado.
Isadora fechou os olhos quando ele a penetrou, e chorou em silêncio. Mas não era dor. Era o peso de uma vida inteira de abandono sendo anestesiado, por um instante, pela ilusão de amor.
Enzo a abraçou com força. E, por alguns minutos, o mundo pareceu certo.
***
Depois, deitados sob os lençóis desarrumados, ela se virou para ele. A cabeça no peito nu, os dedos brincando com a corrente que ele usava no pescoço.
— E a Valentina?
Ele demorou a responder.
— Eu resolvo isso. Você merece mais.
Ela sorriu.
E pela primeira vez em muito tempo, adormeceu com o coração leve.
***
O sol entrava pela janela, quando ela abriu os olhos. O quarto estava vazio.
O lugar onde ele dormira ainda guardava a marca do corpo dele. Mas era só isso: uma marca. A roupa que ele usara — a camiseta largada na poltrona — não estava mais ali. Nem o relógio. Nem o cheiro dele.
Isadora se sentou devagar.
O silêncio tinha mudado de tom. Agora era incômodo. Frio. O tipo de silêncio que avisa: algo está errado.
Vestiu o casaco de novo. O coração já apertado antes mesmo de sair do quarto. Na garagem, um carro a esperava com um motorista que ela não conhecia.
— Ele me mandou de volta? — perguntou, sem conseguir esconder o desconcerto.
— Tenho ordens de levá-la pra casa, senhorita — foi tudo o que o homem respondeu.
Durante o caminho de volta, ela tentou se convencer de que ele só havia saído para resolver algo importante. Que explicaria tudo depois. Que havia uma razão. Sempre há uma razão. Mas nada disso silenciava o peso no peito.
Ao chegar na mansão, mal teve tempo de respirar. Um funcionário se aproximou, tenso.
— Senhora Clarisse quer vê-la na sala principal. Agora.
Isadora congelou. Algo havia acontecido. Algo grande. Algo que faria o mundo dela — e o coração — despencar de onde acabara de subir.
POV ISADORAAs flores eram brancas.Cada arranjo cuidadosamente distribuído pela sala principal exalava um perfume doce e quase enjoativo. As taças de cristal, empilhadas em uma torre reluzente sobre a mesa de mármore, captavam a luz dourada do lustre e a multiplicavam em pequenos brilhos espalhados pelo ambiente. Parecia uma cena de celebração. Um evento de prestígio.Isadora entrou com passos contidos, a bandeja vazia presa entre os dedos, tentando esconder o leve tremor que ainda insistia em seu corpo. Dormira pouco — ou quase nada. A lembrança do toque de Enzo ainda ardia sob a pele, como se o corpo dela se recusasse a aceitar que tudo aquilo tivesse acabado sem uma palavra.Ele tinha sumido. E agora, ali, o mundo parecia seguir sem ela.— Pegue a bandeja com o champanhe. E sorria. — Clarisse apareceu ao lado, o sorriso polido colado ao rosto como uma máscara de porcelana. O tom, porém, era cortante. — Está pálida. Vai assustar os convidados.Isadora assentiu e caminhou até a mesa
POV ISADORAA caixa branca sobre a pia parecia uma bomba-relógio.A chuva batia nas telhas com uma cadência hipnótica e cruel, como se marcasse os segundos até o fim de tudo. O banheiro dos fundos era frio, pequeno e mal iluminado, mas oferecia a única privacidade que Isadora encontrara desde o anúncio devastador na noite anterior.Estava descalça, o cabelo preso às pressas e as mãos úmidas de suor, embora sentisse frio. O teste ainda estava virado, o visor contra a parede, como se ela quisesse fingir que não dependia daquilo. Que não fosse real.Se for negativo, eu respiro. Finjo que ontem nunca aconteceu. Esqueço que acreditei em alguém como Enzo.O coração martelava alto como se quisesse sair pela garganta.Se for positivo… eu…Ela não conseguiu terminar o pensamento. Só sabia que não estava pronta.O tempo pareceu parar quando estendeu a mão e virou o teste devagar, os olhos se ajustando ao visor digital ainda embaçado pela umidade do ambiente.Duas linhas.Nítidas. Cruéis. Inques
POV ISADORA— Isa, espera — a voz de Clara veio apressada, os passos atrás dela ecoando pelo corredor de mármore. — Seu pai não está sozinho. Tem… tem visita. Um Bianchi.Ela parou. Só por um instante. Só até o nome cortar o ar como uma lâmina afiada. Bianchi.O sangue pareceu congelar por um segundo. Ela parou, dando um passo para trás, o ar a sufocando. Enzo? Enzo estava aqui?Tentou conter a tremedeira. Seria bom vê-lo. Ele precisava saber e tomar as responsabilidades.— Mesmo assim — disse, com a voz mais firme do que esperava —, ele vai ouvir. Vai ter que ouvir.***O corredor até o escritório parecia mais longo naquela noite. Cada passo ecoava com um peso que não vinha só das solas dos pés. Vinha das palavras que carregava no peito. Das mágoas que vinham se acumulando há vinte anos.Ela não bateu. Abriu a porta.O escritório era como ela lembrava: madeira escura por todos os lados, cheiro de couro e tabaco, estante com livros que ninguém lia. O relógio de parede fazia tic-tac co
POV ISADORAO silêncio depois da tempestade era quase insuportável.As penas do travesseiro flutuavam no ar, girando lentamente como restos de uma batalha que ninguém viu. O abajur tombado piscava intermitente, espalhando uma luz trêmula sobre os livros jogados ao chão, alguns ainda abertos, outros rasgados na lombada. Havia cacos de vidro perto da porta. E, no centro de tudo, sentada com as pernas dobradas e os ombros encostados na parede, Isadora ainda segurava o teste de gravidez entre os dedos.As duas linhas ali pareciam zombar dela. Mas não havia mais lágrimas.O rosto estava seco. A boca firme. Os olhos duros como pedra. A dor já não queimava — agora, congelava.Se ninguém vai me proteger… então que me temam.Ela pensou em Matteo.Não no primo sedutor que todos murmuravam à sombra do nome Bianchi. Pensou no homem que a olhou no escritório sem dó, sem escárnio, sem pena. Apenas… a observou. Como quem assiste uma tragédia acontecer e espera, curioso, para ver se o que resta dos d
O portão era alto demais para alguém como Isadora.Imponente, blindado, vigiado. Tudo naquela mansão dizia: você não pertence aqui. Mas Isadora não se mexeu. Os braços cruzados sobre o peito, o vento levantando as pontas do vestido vermelho contra suas pernas. O salto firme batia contra o chão de pedra, ecoando como um desafio.Dois seguranças se aproximaram com lentidão, os olhos varrendo-a dos pés à cabeça.— Volta pra onde veio, moça. Essa casa não é de visita.Ela não respondeu de imediato.— Preciso falar com Matteo Bianchi.Um deles riu, seco.— E eu preciso de férias. Ninguém entra sem hora marcada. Ele não está.— Está — respondeu ela, com firmeza. — E vai me ouvir.O segundo segurança deu um passo à frente, já com a mão no braço dela, pronto para empurrá-la para fora. Foi quando eles pararam.Congelaram, como cães farejando o dono antes da bronca.Isadora sentiu a presença antes de vê-lo. Aquela mudança súbita no ar, como quando a tempestade se aproxima em silêncio. Matteo.V
O som da chuva era um tambor surdo sobre o teto do carro. Cada batida parecia cravar ainda mais a ansiedade na pele de Isadora, enquanto o mundo além das janelas se dissolvia em borrões cinzentos. O motor zumbia de maneira constante, preenchendo o silêncio espesso entre ela e Matteo.Ela mantinha as mãos unidas no colo, os dedos entrelaçados com força para evitar que tremessem. Cada respiração era medida. Cada batida do coração, uma contagem regressiva para algo que ela não conseguia controlar.Matteo dirigia como se nada pudesse tocá-lo. Nenhuma hesitação, nenhum sinal de tensão. Era como um navio cortando mares revoltos sem alterar o curso.Por trás da máscara de calma, Isadora sabia: ele era tão perigoso quanto o que a esperava do outro lado.Pelo retrovisor, os olhos cinza-escuros dele a fitaram por um breve instante. Havia algo ali — uma percepção afiada, uma expectativa muda.Quando ele falou, a voz foi firme, cortando o ar pesado do carro.— Não abaixe a cabeça. Nem para ela.O
A chuva havia parado quando o carro retornou à mansão dos Diniz, mas o mundo parecia ainda mais cinzento do que antes.Isadora desceu com passos contidos, o vestido colado ao corpo pela umidade do ar. Os portões se fecharam atrás dela com um estalo pesado — um som que mais parecia uma sentença. Dentro da casa, a luz dourada dos lustres lançava sombras traiçoeiras sobre as paredes. E logo na entrada, como se tivesse esperado a oportunidade perfeita para atacar, Clarisse apareceu.— Onde você estava? — a voz dela soou doce como veneno. — Fugiu pra rodar bolsinha na rua?Os olhos de Isadora cruzaram os dela. Não tremeram. Não vacilaram.— Fui apenas… respirar.Clarisse apertou a boca numa linha fina, mas não respondeu. Apenas se virou, o robe de seda esvoaçando, como se Isadora fosse indigno até para um insulto completo.O som de saltos apressados ecoou no corredor. Valentina surgiu com a energia de quem se achava a dona do mundo. Até ver Isadora.Ela parou no meio do caminho, o sorriso
O corredor estava mergulhado em sombras. A mansão parecia respirar devagar, como se o próprio ar tivesse ficado mais pesado desde o anúncio do noivado.Isadora caminhava em passos lentos, tentando alcançar o quarto, o corpo ainda tenso do jantar. Cada centímetro da pele parecia carregado de olhares, de sussurros venenosos que não precisavam ser ditos para serem sentidos.Foi então que uma mão forte agarrou seu braço. O choque fez seu coração tropeçar. Enzo.O rosto dele, vermelho de ódio, apareceu a centímetros do dela. O hálito quente misturado com álcool bateu em seu rosto.— Você acha que se metendo com o Matteo vai apagar o que é? — ele rosnou, tão baixo que mais parecia um animal prestes a atacar. — Você sempre vai ser uma aberração, Isadora. Sempre. Vai se arrepender de ter jogado sujo desse jeito.— Jogado sujo? E o que você fez comigo?— O que fiz a uma com você, Isadora? Apenas te mostrei algo que você nunca teria. Uma imunda como você.Ela tentou se soltar, mas o aperto só a