POV: ISADORA
O copo de cristal antigo rangia sob o pano de algodão, e Isadora limpava cada curva como se sua vida dependesse disso. Talvez dependesse.
A superfície translúcida refletia seu rosto, mas distorcido — o que ela mais reconhecia nele. Um olho mais largo, a boca fina puxada para o lado errado, o nariz achatado pelo ângulo do vidro. Ela olhou por alguns segundos, hipnotizada. Às vezes, era assim que se sentia: um erro de forma, uma presença deslocada no lugar errado.
Estava descalça. Os pés sujos pelo mármore lustroso da mansão Diniz. Suava sob a camisa branca de manga longa, que era dois números maiores e emprestada da lavanderia. Invisível — como sempre.
— Senhorita Isadora, a senhora quer que eu leve os vinhos agora? — perguntou o novo ajudante, um adolescente com olhos gentis e a camisa amassada.
Ela abriu a boca para agradecer, mas antes que qualquer som saísse, a governanta cruzou o salão com passos firmes.
— Não a chame assim — disse, ríspida. — Ela não é da família. Não confunda.
O garoto piscou, envergonhado, e não disse mais nada.
Isadora apenas assentiu, segurando o pano com mais força.
A mansão estava em silêncio cerimonial. Preparavam-se para um jantar de negócios — empresários importantes da alta sociedade paulistana viriam negociar investimentos com o patriarca, que agora vivia mais trancado no escritório do que na própria casa.
Mas Clarisse, como sempre, fazia questão de que tudo estivesse impecável.
O arranjo de flores no centro da mesa tinha sido trocado três vezes desde o início da tarde.
— Isso aqui está horrível. — A voz cortante de Clarisse invadiu o ambiente. Ela usava um vestido de seda lilás que parecia feito sob medida para seu corpo esguio. O perfume cítrico a precedia em todos os cômodos. — Eu pedi orquídeas brancas, não essa palhaçada de flores mistas. Quem aprovou isso?
Isadora deu um passo à frente.
— Fui eu, senhora. As orquídeas chegaram com as pétalas manchadas, e achei que…
— Achou? — Clarisse ergueu uma sobrancelha, sorrindo com desdém. — Se vai viver aqui de favor, ao menos sirva para algo. Não pagamos você para pensar.
Pagando? Isadora abaixou os olhos. Não disse nada. Nunca dizia.
A música clássica preencheu o ambiente antes mesmo que os saltos de Valentina batessem nos degraus. Era sempre assim — ela chegava com trilha sonora, como se o universo soubesse que precisava de atenção.
Valentina desceu as escadas como se desfilasse num tapete vermelho. O vestido dourado abraçava seu corpo como seda líquida. Os olhos castanhos estavam realçados com sombra dourada, os lábios perfeitos com um batom nude de revista.
— Meu amor! — Clarisse abriu os braços, a voz adoçando como um milagre. — Você está deslumbrante. Como sempre.
Valentina aceitou o elogio como uma rainha entronada. Seu olhar caiu sobre Isadora, que ainda segurava o pano com o copo reluzente.
— Ainda aqui? Pensei que tivessem mandado embora junto com os entulhos.
O coração de Isadora bateu seco no peito. Ela não respondeu.
— Ajude sua irmã a se arrumar — ordenou Clarisse, já se afastando. — E vê se não estraga o vestido com essas mãos de lavadeira.
No quarto de Valentina, o clima era pior.
A irmã se jogou diante do espelho de corpo inteiro e apontou para a bancada de maquiagem.
— Pega o iluminador. O dourado. Não o rosado. Se errar, eu te mato.
Isadora obedeceu.
— Aperta esse laço. Mais forte. Mais. Você é fraca até nisso?
Ela puxou com cuidado.
Valentina virou-se lentamente, os olhos fixos nela como lâminas afiadas.
— Não é cansativo viver onde ninguém quer você?
Isadora parou. A pergunta soou mais baixa, quase sussurrada, como se houvesse curiosidade genuína nela. Mas não havia.
— Eu… já me acostumei. — respondeu, tentando parecer neutra.
— Que triste — disse Valentina, com um sorrisinho satisfeito. — Eu não suportaria.
A cozinha estava quente e barulhenta. Isadora foi buscar os pratos quando ouviu as risadas abafadas de duas empregadas no canto.
— Você viu a cara que ela fez quando a dona Clarisse chamou de lavadeira? — disse uma, enxugando as mãos no avental.
— Dizem que ela é filha de uma prostituta. Uma daquelas de beira de estrada, sabe?
— Se fosse minha filha, já teria sumido faz tempo. Mas né… fingem que é da família só pra parecer bonitos na mídia.
O riso ecoou no azulejo.
Isadora fingiu não ouvir, mas as mãos tremiam tanto que quase deixou cair o prato.
A sala de jantar já estava cheia. Clarisse sorria e cumprimentava os convidados como se fosse a dama de Versailles. Valentina posava ao lado do pai, com um vestido novo, sorriso treinado e taça de vinho nas mãos.
Isadora passou com uma bandeja de canapés.
— Nova garçonete? — perguntou um dos empresários, franzindo o cenho ao vê-la.
Clarisse não hesitou:
— Não exatamente. É só uma… agregada.
Valentina riu, e Isadora sentiu o rosto arder. O orgulho latejava como um corte recém-aberto.
Já não conseguia respirar direito.
Afastou-se, recolhendo taças vazias, e parou atrás da divisória de vidro que separava a sala de jantar do hall. Foi ali que escutou.
Clarisse, com a taça na mão, falava com a sogra, Dona Celina — uma mulher com olhos de pedra e voz de funeral.
— Ela ainda está aqui por pena. Mas nem isso ela sabe agradecer.
— Devia estar é no orfanato — disse a velha, seca. — Bastarda ou não, ainda come melhor que muita gente.
Isadora não reagiu. Nem uma vírgula. Mas por dentro, algo se rompeu.
Deixou a bandeja sobre a bancada e subiu as escadas devagar, como se cada degrau a afundasse em lama.
No banheiro, trancou a porta, ligou a torneira, e encostou a testa no espelho. O vidro estava embaçado pela umidade. Ela inspirou fundo, a garganta presa.
— Eu vou sair daqui — sussurrou, para si mesma. — Nem que seja sangrando.
E pela primeira vez, não foi só um pensamento.
Foi uma promessa.