O relógio marcava exatamente 10h12 quando Miguel entrou novamente no salão principal da ONG. O mesmo cheiro de tinta fresca, madeira encerada e café adoçado demais o envolveu. Mas agora, tudo parecia ter outra cor. Outra temperatura. Outro ritmo.
Talvez porque ela estivesse ali. Anyellen. No canto do salão, com uma blusa branca simples e os cabelos presos de forma displicente, ela ouvia um dos jovens com atenção. A postura era relaxada, mas os olhos... os olhos eram como lâminas sem corte. Afiados, mas silenciosos. E ao pousarem nele, Miguel teve a impressão nítida de que estava nu, não no corpo, mas na alma. Ela não olhava como quem via. Olhava como quem lia. E ele não sabia o que incomodava mais: o fato de estar sendo lido… ou o fato de querer que ela lesse mais. — Decidiu voltar? A voz dela o alcançou com um tom que mesclava ironia e curiosidade. — Decidi. Ele respondeu, ajeitando o blazer. — Digamos que o ambiente me intrigou. — É um lugar feito para quem sente. — E se eu não for alguém que sente? Anyellen sorriu de leve, inclinando a cabeça como quem enxerga além da provocação. — Então por que voltou, Miguel? O nome dele, saindo da boca dela, soava como uma carícia com garras. — Talvez para entender por que você me incomoda tanto. Ele deu um passo em direção a ela. — Ou talvez só para provar que eu posso vencer. — Vencer o quê? Ela rebateu com suavidade perigosa. — A mim? — A si mesmo. O silêncio que se seguiu foi mais íntimo do que qualquer toque. Os olhos dela seguravam os dele com força. E Miguel se sentiu exposto de um jeito que nenhuma amante, nenhuma repórter, nenhum sócio jamais o havia deixado. — E você sempre usa esse terno para esconder quem é? Anyellen perguntou. — E você sempre usa essa boca para despir os outros? Ele devolveu, baixo, com a voz carregada de algo que nem ele sabia nomear. Ela deu um passo, ficando a poucos centímetros dele. Miguel podia sentir o perfume suave que ela usava; algo com lavanda e algo mais... algo que era só dela. — Eu uso essa boca pra dizer o que ninguém tem coragem. Sussurrou. — E você… usa esse terno como armadura. Mas eu vejo através. — E o que você vê? A pergunta escapou, mais rouca do que ele queria demonstrar. — Um homem em guerra. Miguel se inclinou, o rosto quase tocando o dela. — Cuidado com quem você decide ler, Anyellen. Alguns livros queimam. — E alguns homens se incendeiam com o que negam. Ela respondeu, sem desviar os olhos. — O que você sente, Miguel, não é raiva. É medo. — De quê? — De mim. A respiração dele falhou. A eletricidade que nasceu naquele centímetro entre os dois era quase palpável. Miguel sentiu a garganta seca, os dedos formigarem. Estava acostumado a comandar salas, mercados, mulheres… Mas Anyellen era o tipo de mulher que não se conquistava com ordens. Ela precisava ser tocada com respeito. E provocada com intensidade. — Eu não costumo ter medo, Anyellen. — Mentira. A resposta dela veio com suavidade cruel. — Você só não costuma sentir. Mas comigo, você sente. Ele a segurou pelo braço com delicadeza, mas firmeza suficiente para ser notado. — Você sabe o que está fazendo? — Sempre. — Isso é um jogo? — Não. Isso é o que acontece quando um homem que não sabe amar encontra uma mulher que se recusa a ser dominada. Miguel soltou o braço dela devagar, como se o toque tivesse queimado. Mas seus olhos… os olhos seguiam presos aos dela como se ali estivesse a única verdade que ele buscava. — Se eu quiser você. Disse ele, baixo, rouco — Vai ser do meu jeito. — E se eu quiser você. Ela devolveu — vai ser com verdade. E naquele momento, algo em Miguel vacilou. Não era o desejo. Não era a raiva. Era o reconhecimento. Porque ela o via. Sem maquiagem. Sem escudo. Sem armadura. E o sorriso breve que ela deu, ao virar de costas e se afastar, foi a sentença silenciosa do que viria a seguir: Ele estava perdido. E pior. Queria continuar se perdendo nela. O silêncio entre eles era mais eloquente do que qualquer discurso. Anyellen mantinha os braços cruzados sobre o peito, não como defesa, mas como quem já sabia que era observada e gostava de ser enigma. Miguel, por outro lado, parecia menos um magnata e mais um homem tentando não se perder no mistério de uma mulher que via demais — e se escondia de menos. — Esse olhar seu. Ele murmurou, arrastando os olhos por ela, como quem queria decifrar cada parte do corpo que o terno dela não escondia totalmente, me dá a estranha sensação de que estou... exposto. Anyellen ergueu uma sobrancelha, os lábios curvando-se num quase sorriso. — Que bom. É assim que os meninos aprendem a respeitar. Quando descobrem que não conseguem controlar tudo. — Eu nunca fui bom em ser controlado. — Ele se aproximou, apenas um passo, mas suficiente para tornar o ar entre eles carregado de algo não dito. — E eu nunca tive paciência com homens que confundem força com medo de sentir. A resposta veio afiada. Mas era a forma como ela disse aquilo, sem raiva, sem provocação, que o desarmava. Como se apenas estivesse... constatando. Como quem lê um livro em voz alta para quem nunca teve coragem de abrir a primeira página. Miguel quis rir, mas o que saiu foi um som abafado, quase grave, quase rouco. Aquela mulher o tirava do eixo. E ele gostava disso. — Você sempre foi assim? Perguntou. — Uma tempestade de lucidez num mundo de gente rasa? Ela deu um passo, agora mais próxima. A ponta dos sapatos quase roçou os dele. E quando falou, sua voz era baixa, como se confessasse um segredo apenas ao destino. — Eu aprendi cedo que se você não for o seu próprio abrigo, ninguém será. Mas isso não me impediu de sentir. Nem de querer ser sentida por inteiro. Miguel a encarou, e algo em seu peito se apertou. Não era desejo. Isso ele já reconhecia de longe. Era algo mais perigoso. Algo que vinha das partes dele que preferia manter trancadas. — O que você vê quando olha pra mim, Anyellen? Ela não respondeu de imediato. Olhou nos olhos dele como quem atravessava camadas, memórias, muralhas. Como quem chegava onde ninguém ousava tocar. — Um homem que acha que sentir é fraqueza. Que aprendeu a se armar de luxo, contratos e distâncias. Mas que, no fundo... Ela se aproximou mais, a voz agora um sussurro que escorria quente até o centro do estômago dele , só queria que alguém o olhasse como homem. E não como império. O impacto daquelas palavras foi imediato. Ele não respondeu. Não conseguiu. Só soube que, se não a beijasse naquele instante, enlouqueceria. Mas Anyellen, como sempre, recuou primeiro. Um passo. Apenas um. — Eu não sou o tipo de mulher que se vende, Miguel. E muito menos o tipo que se dobra. — E eu não sou o tipo de homem que se rende. Mas com você... Ela não esperou o fim da frase. — Comigo, você vai ter que aprender que algumas guerras não são vencidas. São sentidas. Aqui ! Apontou o próprio peito, e aqui. Tocou de leve a cabeça dele com o indicador. E então, com a mesma firmeza de quem sabe o efeito que causa, virou as costas e saiu. Sem pressa. Sem se despir mais do que já havia feito com as palavras. Miguel ficou ali. O coração batendo como se quisesse sair do peito. E pela primeira vez, não sabia se queria vencê-la... Ou se, finalmente, estava pronto para se deixar ser vencido.