Na manhã seguinte, a mensagem chegou antes mesmo das oito.
[Valente Enterprises] – Segunda fase do processo: 10h30. Sede central. Comparecer pontualmente.
Helena leu a notificação com a frieza que treinara. Nenhuma reação. Nenhum sorriso. Apenas uma leve elevação de queixo enquanto deixava o celular sobre a pia do minúsculo banheiro do flat.
Enquanto passava a base no rosto, pensava em como aquela empresa funcionava como uma engrenagem bem lubrificada: ágil, objetiva, sem espaço para hesitação.
Era exatamente isso que ela precisava ser.
Vestiu uma calça preta de alfaiataria, camisa de seda azul escura e sapatos discretos de salto baixo. O cabelo preso num coque firme, sem um fio fora do lugar. Nenhum adereço. Nenhum sinal de vaidade. Apenas o necessário para parecer profissional, competente e invisível.
O tipo de mulher que ninguém questionaria.
Às 10h15, estava de volta à recepção da Valente Enterprises, com passos precisos e a expressão calma. O elevador a levou novamente ao sétimo andar, onde Marcus Halloway a esperava na sala de reuniões principal.
— Senhorita Costa, bom dia. Obrigado por vir com tanta pontualidade. — Ele sorriu com simpatia contida. — Hoje será uma conversa mais direta.
Helena assentiu, sentando-se com o mesmo cuidado estudado do dia anterior.
— Como foi dito na primeira etapa, estamos reestruturando a equipe de análise estratégica. É um setor sensível. Precisamos de alguém que saiba operar com discrição, sob pressão, e com... bom senso político.
— Compreendo.
— Você fala inglês, português e francês fluentemente?
— Sim.
— Experiência prévia com processos de aquisição?
— Três anos.
— Já teve que tomar decisões éticas em ambientes hostis?
A pergunta pegou-a por um segundo. Só um segundo.
— Sim.
Marcus a observou por mais tempo do que deveria, antes de abrir um sorriso de satisfação.
— Excelente. Acho que o senhor Valente vai querer conhecê-la.
Helena controlou o súbito aperto no peito com um leve ajuste na postura.
— Claro.
— Ele tem alguns minutos agora. Me acompanhe, por favor.
O corredor era mais silencioso do que nunca. Helena sentia cada passo ecoar no carpete espesso. Quando Marcus abriu a porta do último escritório do andar, ela viu o homem de costas, observando algo pela parede de vidro.
Arthur Valente.
Sem terno dessa vez, apenas camisa branca com as mangas dobradas, braços cruzados, a expressão absorta. A vista dali era impressionante — o Tâmisa serpenteava ao fundo, cruzado por pontes antigas e embarcações apressadas.
— Arthur — Marcus chamou, com a familiaridade de anos de convivência. — Esta é Helena Costa.
Ele se virou.
Foi a primeira vez que ela pôde observá-lo de frente, por tempo suficiente. Os traços marcados, o queixo forte, o olhar que parecia enxergar através das pessoas. Não bonito da forma óbvia. Mas magnético.
Arthur não estendeu a mão. Apenas inclinou levemente a cabeça.
— Senhorita Costa.
— Senhor Valente.
— Disseram que seu currículo impressionou.
— Fico feliz em saber.
Ele indicou a cadeira à frente da mesa de vidro. Helena sentou-se com o mesmo controle de sempre, sem permitir que as mãos tremessem.
— Conte-me por que quer trabalhar aqui — ele disse, sem rodeios.
— Porque sei que posso ser útil.
— Como exatamente?
— Discrição, lealdade e resultados. É o que mais valorizam por aqui, não?
Ele sorriu de leve. Não foi um sorriso gentil — foi um teste.
— E como sabe tanto sobre o que valorizamos?
— Estudei.
— Estudou a empresa?
— E o senhor.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Foi denso. Arthur a observou por mais alguns segundos, como quem avalia um enigma difícil de decifrar.
Helena sustentou o olhar. Ela sabia jogar aquele jogo.
— Discrição e lealdade — ele repetiu, inclinando-se levemente para a frente. — Não são qualidades comuns em quem está começando.
— Por isso mesmo são valiosas.
Marcus, ainda presente na sala, pigarreou baixinho.
— Arthur, temos reunião com o jurídico em quinze minutos.
— Eu sei.
Arthur olhou para Helena uma última vez.
— Dê a ela um contrato temporário de três meses. Que comece segunda-feira. Setor de Estratégia Avançada.
Helena manteve a postura neutra, mesmo quando o estômago deu um leve giro.
— Obrigada pela oportunidade.
— Veremos se foi merecida.
Ele se virou de novo para a janela, como se ela já estivesse dispensada.
Helena se levantou, agradeceu com um leve aceno de cabeça e seguiu Marcus de volta ao corredor.
No elevador, o diretor de RH finalmente relaxou os ombros.
— Parabéns, senhorita Costa. Poucos aguentam um interrogatório dele com tanta firmeza.
— Agradeço, senhor Halloway.
— Marcus, por favor. Estamos na mesma equipe agora.
Helena apenas sorriu.
Mas por dentro, não havia euforia. Nem alívio.
Só uma certeza silenciosa: agora ela estava dentro.
No final da tarde, ela voltou ao flat com um contrato em mãos.
Sentou-se na cama com os joelhos dobrados, o documento no colo. Leu cada linha com atenção, como se não soubesse que aquelas palavras selavam um pacto muito maior.
Três meses. Tempo suficiente para se infiltrar. Observar. Derrubar.
Ou, talvez, se perder.
Mas isso, ela não podia permitir.
Com um marcador azul, grifou algumas cláusulas-chave e dobrou o papel com precisão. Guardou tudo na pasta e fechou os olhos por um instante.
O rosto dele voltava à mente como uma sombra: o olhar atento, os dedos longos apoiados na mesa, o tom de voz que era mais comando do que conversa.
Helena mordeu o lábio inferior. Não havia nada nele que fosse gentil. Mas havia uma presença que prendia. Que invadia.
Concentre-se, pensou. Você não está aqui pra sentir nada. Está aqui pra acabar com ele.
Mas uma dúvida mínima se insinuou.
E se ele não fosse exatamente o homem que ela achava que era?
Ela se levantou e foi até a pequena janela do flat. Londres parecia tão indiferente ao que acabara de acontecer — as filas de ônibus vermelhos, as bicicletas passando rápido demais, os turistas que apontavam para fachadas antigas como se nada ali pudesse se romper.
Três meses, repetiu em silêncio. Era tão pouco e, ao mesmo tempo, tudo.
O celular vibrou na bolsa, quebrando o silêncio do quarto.
Era outra mensagem da mãe. Seu pai perguntou de você. Disse que queria ouvir sua voz.
Helena fechou os olhos. Pensou no homem que costumava lhe ensinar planilhas e tabelas de custos como se fossem jogos de criança. No pai que, no fim, parecia menor que todas aquelas dívidas.
Talvez devesse ligar. Mas sabia que a voz dele a faria hesitar. E não podia hesitar.
Guardou o telefone e respirou fundo. Quando tornasse a falar com eles, teria algo concreto a dizer — uma vitória, mesmo que pequena. Um passo adiante.
No fundo da pasta, encontrou o crachá provisório que Marcus entregara antes de saírem do prédio. O plástico rígido tinha seu nome em letras pretas. Apenas isso. Nenhum indício de que, em breve, aquela identidade seria outra armadilha.
Helena passou o polegar sobre as letras como quem testa uma lâmina.
Setor de Estratégia Avançada.
O coração bateu mais rápido. Ali era onde os contratos passavam antes de qualquer aprovação final. Era onde Arthur Valente validava aquisições, fusões, dissoluções.
Era onde tudo começava — e onde ela colocaria o fim.
Seja eficiente. Seja silenciosa. Seja indispensável.
As palavras tornaram-se um mantra.
Ela se levantou e foi até a bancada da cozinha. Preparou chá preto, despejou-o numa caneca lascada e bebeu de um só gole, como se o amargor fosse capaz de limpar qualquer fragilidade que insistisse em sobreviver.
Quando voltou ao quarto, decidiu reler todas as anotações que fizera sobre a Valente Enterprises. Cada perfil de diretor, cada linha do organograma. Passou os dedos pelas fotos que imprimiu do site oficial — retratos institucionais em preto e branco, com sorrisos ensaiados.
E no centro, sempre ele.
Arthur.
Ela estudara tudo que podia: sua história, entrevistas, artigos de revistas de negócios. Sabia que ele crescera num bairro pobre do norte de Londres. Que aos vinte e oito anos já comandava uma divisão inteira. Que era considerado frio, meticuloso, quase paranoico com controle.
Sabia também que ele não perdoava falhas.
Um lampejo de satisfação percorreu sua mente. Talvez fosse ali que ele tropeçaria. Ninguém é impecável o tempo todo.
Helena fechou a pasta e a guardou no fundo do armário, atrás de uma pilha de roupas dobradas com precisão. Cada detalhe tinha que estar em seu devido lugar — porque tudo que fugia do controle a lembrava do que perdera.
Quando deitou na cama, ainda vestida, permitiu que os olhos se fechassem só por um instante.
Na penumbra atrás das pálpebras, viu o contorno dele parado junto à janela, braços cruzados, como se o mundo lá fora pertencesse a ele por direito.
Você não vai perceber, Arthur, pensou. Não vai nem imaginar de onde virá a queda.
E com esse pensamento, finalmente, adormeceu.