Capítulo 3 — O Contrato

A noite não passou. Ela apenas se arrastou.

O relógio marcava 5h17 quando Valentina desistiu de fingir que dormia. O apartamento estava mergulhado em uma penumbra úmida, o ar cheirava a café frio e arrependimento. Na mesa de centro, o contrato permanecia aberto, as páginas amassadas nas pontas pelos dedos inquietos.

Lá fora, São Paulo ainda parecia dormir um silêncio sujo, cortado apenas pelo ronco distante de um carro ou por uma sirene solitária.

Ela pensou em levantar, abrir a janela, deixar o vento entrar. Mas o corpo pesava demais, como se cada célula soubesse o que viria.

A mente repetia o nome dele como um eco: Rafael Montenegro.

A voz fria. O olhar que não vacilava. O jeito como ele a estudava sem pressa, como quem lê uma sentença já escrita.

Valentina recostou-se no sofá e apertou o nó da gravata do pai que ainda usava como marcador dentro da pasta. “Justiça é o que se faz quando o mundo desaba”, ele dizia.

Mas e quando o mundo desaba por dentro?

As palavras do tio voltaram como uma farpa: traga um milhão em três dias.

Era isso. Três dias para escolher entre a dignidade e o legado.

O celular vibrava sobre a mesa notificações de e-mails, cobranças, mensagens não lidas de sócios que agora agiam como abutres sobre o nome Diniz.

Ela ignorou todas.

Pegou a caneta, deslizou o polegar sobre o corpo metálico, e por um segundo achou que não conseguiria.

A luz da madrugada entrava fraca pela janela, dourando as bordas do papel.

A caneta tocou a linha da assinatura.

E ali, no silêncio mais cruel que já sentiu, ela assinou.

O som foi seco. Um estalo.

Parecia o de algo se partindo talvez o orgulho. Talvez a própria alma.

Por alguns segundos, ficou apenas olhando a assinatura.

Bonita, elegante, precisa.

Como uma sentença.

A caneta tocou a linha da assinatura.

E ali, no silêncio mais cruel que já sentiu, ela assinou.

O som foi seco. Um estalo.

Parecia o de algo se partindo — talvez o orgulho. Talvez a própria alma.

Por alguns segundos, ficou apenas olhando a assinatura.

Bonita, elegante, precisa.

Como uma sentença.

O peito então se contraiu.

A primeira lágrima veio muda, depois outra, e mais outra — até o corpo ceder inteiro.

O choro foi feio, descompassado, sem a dignidade que ela sempre tentou manter.

As mãos buscaram o rosto, os ombros tremiam, e o som que escapou não era de dor — era de rendição.

Quando finalmente o silêncio voltou, o chão parecia distante.

Valentina respirou fundo, e as lágrimas secaram devagar.

Não pelo contrato, mas pelo que ele significava.

Porque naquele instante, Valentina Moura, filha do homem que acreditava que tudo tinha solução pela lei, vendeu o próprio destino por justiça.

Levantou-se cambaleando, foi até a janela e empurrou as cortinas.

A cidade já acordava, cinza e impessoal. Carros passavam apressados, pessoas seguiam suas rotinas, e ela, ali, com o coração trincado, percebia o absurdo: o mundo continuava.

No reflexo do vidro, viu-se com os cabelos desalinhados, os olhos avermelhados e uma força estranha surgindo sob a dor.

Não era coragem. Era sobrevivência.

Pegou o contrato, dobrou com cuidado e o guardou na pasta.

No canto do envelope, escreveu uma frase curta, quase como um epitáfio:

"Pelo nome que me resta."

O som da chaleira no fogão quebrou o silêncio.

Ela se serviu de café preto e amargo, sem açúcar. Engoliu o primeiro gole como quem engole uma confissão.

O telefone vibrou outra vez.

Uma nova mensagem.

Dessa vez, apenas duas palavras:

“Hoje. Nove horas.”

Nenhum remetente. Nenhuma assinatura.

Mas ela já sabia de quem era.

Valentina pousou a xícara e, pela primeira vez em dias, respirou fundo.

O medo não tinha ido embora.

Mas havia cedido lugar a algo mais perigoso uma calma fria, quase letal.

Ela iria.

Não por dinheiro.

Mas porque não suportava mais se sentir à mercê de ninguém.

O relógio marcava 6h45 quando ela começou a se arrumar.

Cabelo preso. Blazer escuro. Olhos secos.

E, antes de sair, olhou para o retrato do pai na parede.

— Perdoa pai, mas vocês não me deram escolhas. Sussurrou. — Eu só estou aprendendo a lutar como me ensinaram.

E o silêncio da casa respondeu com o estalar distante de um trovão.

O céu da manhã estava coberto por nuvens espessas, o tipo de cinza que faz a cidade parecer em luto.

O trânsito engolia tudo, mas Valentina não sentia o ruído.

Dentro do carro, o som do motor era um zumbido distante o único movimento que restava entre ela e o abismo que escolhera.

O contrato repousava no banco do passageiro, dobrado com precisão. Nenhuma marca de hesitação. Nenhum borrão.

Ela dirigia com as mãos firmes, mas o peito parecia feito de vidro prestes a rachar.

Quando estacionou diante do Hotel SkyGlass, o relógio marcava 8h59.

Um minuto antes do horário.

Nem um segundo de atraso como se até a pontualidade fosse parte do acordo que ela ainda fingia não ter aceitado.

O mesmo funcionário da noite anterior a reconheceu, mas nada disse.

O elevador subiu em silêncio. O número 13 acendeu em vermelho, como um presságio.

Ela ajustou o blazer, respirou fundo e bateu à porta.

Rafael abriu sem demora.

Dessa vez, não vestia camisa branca. O terno era negro, o olhar idem.

Tinha a expressão tranquila de quem nunca perde o controle e a presença que fazia o ar parecer menos respirável.

— Pontual. Disse ele, sem ironia. — Gosto disso.

Ela ergueu o queixo, ignorando o tremor das mãos.

— Vim devolver o contrato. Assinado.

Estendeu a pasta.

Ele a pegou com calma, abriu, e conferiu cada página com a mesma frieza de um auditor. Nenhuma emoção. Nenhuma palavra.

Apenas o som seco do papel sendo virado.

Quando terminou, levantou os olhos.

— Imagino que tenha pensado bem.

— Pensei. A voz dela era firme, mas baixa. — E percebi que às vezes é preciso vender o que sobrou pra comprar um novo começo.

— Então estamos de acordo.

Da pasta, ele tirou um pequeno envelope. Dentro, uma folha simples, com letras em negrito: Comprovante de transferência bancária, "US$ 1.000.000,00."

Empurrou o papel sobre a mesa.

— O depósito foi feito há exatos quinze minutos. E completou, com aquela calma que soava como ameaça: — Gosto de cumprir o que prometo.

Ela olhou o papel sem tocá-lo.

Um milhão.

A quantia que salvaria o nome da família, o escritório, tudo o que restava.

E, ao mesmo tempo, o preço exato da própria liberdade.

— Um milhão por doze meses. Disse, com um sorriso irônico. — Parece um bom negócio.

Rafael a observou por um instante longo demais.

— Não é um negócio, Valentina. É uma aliança.

— Sem amor. Rebateu.

— Sem ilusões. Corrigiu ele.

O ar ficou denso. Por um momento, ela pensou que ele se aproximaria mas Rafael apenas cruzou os braços, analisando-a como quem examina uma peça rara.

— A cerimônia será discreta. Civil. Amanhã às dez. Disse. — Depois disso, sua vida vai mudar.

— Já mudou. Respondeu. — Só não decidi se pra melhor ou pior.

Um canto da boca dele ameaçou um sorriso, mas morreu antes de nascer.

— Não costumo errar previsões.

Valentina respirou fundo e se levantou.

— Então nos vemos amanhã, senhor Montenegro.

— Rafael. Corrigiu ele. — Vai precisar se acostumar a dizer isso com naturalidade.

Ela manteve o olhar fixo no dele.

— Dizer o nome não é o mesmo que pertencer a ele.

Por um segundo, o silêncio entre os dois pareceu vivo.

Ele deu um passo à frente apenas um. O suficiente para o perfume dele alcançá-la, amadeirado e frio.

Os olhos cinzentos baixaram para a boca dela, e o ar entre ambos pareceu prender o fôlego do mundo.

Mas Rafael recuou.

— Até amanhã, senhora Montenegro.

O tom foi neutro, mas a escolha do senhora foi uma faca.

Ela virou-se sem responder, saiu da suíte e deixou a porta fechar atrás de si.

No elevador, o reflexo dela tremia uma mulher nova, meio assustada, meio perigosa.

Quando o celular vibrou, ela olhou sem pressa.

A mensagem era curta, sem assinatura, mas a fonte era inconfundível:

“Pagamento confirmado."

Valentina soltou um riso seco.

— Valentina, você se casou com o dono do inferno... — murmurou para si mesma.

Enquanto as portas se abriam para o saguão dourado, ela ergueu o queixo.

O jogo tinha começado.

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