Capítulo 4 — As Cinzas do Altar

O espelho refletia uma mulher que ela ainda não reconhecia.

O cabelo preso em um coque rígido, a maquiagem leve escondendo a exaustão, o vestido bege de corte simples nada de véu, flores ou promessas. Era apenas um contrato vestido de cerimônia.

O relógio marcava 8h. Faltava menos de uma hora.

A casa estava silenciosa, como se até as paredes esperassem o desfecho. A pasta com o contrato repousava sobre a mesa, ao lado de uma xícara de café intocada.

Valentina observou as próprias mãos por um instante. Estavam frias. As unhas curtas, impecáveis, como sempre. Mas tremiam.

Pegou o celular, rolou mensagens antigas e parou na última foto com o pai: os dois no tribunal, sorrindo. Ele usava a toga, ela segurava o diploma de Harvard. O brilho nos olhos de ambos era o mesmo o brilho de quem acreditava na verdade.

Ela quase riu. Verdade. Palavra bonita demais pra caber no mundo em que vivia agora.

Um toque na campainha interrompeu o silêncio.

Valentina olhou o relógio. 9:12h.

Não esperava ninguém.

Antes dela mesmo abrir a porta, uma mulher entrou sem pedir permissão. Terno preto, coque apertado, perfume caro e olhar de quem já conhecia o terreno.

— Senhorita Diniz? Disse, sem rodeios. — O senhor Montenegro pediu que eu a acompanhasse até o hotel.

Valentina ergueu o rosto, sem esconder o incômodo.

— Ele costuma mandar escolta para todas as mulheres com quem faz negócios?

A mulher arqueou uma sobrancelha, como quem se diverte com a ingenuidade alheia.

— Só quando a mercadoria é cara. Respondeu, seca. — E ele prefere garantir que chegue inteira.

O ar saiu dos pulmões de Valentina, mas ela não piscou.

A palavra ficou ecoando entre as duas: mercadoria.

Fria. Exata.

Ela pegou o blazer com calma, vestindo-o como uma armadura.

— Diga a ele que a mercadoria sabe andar sozinha.

A assistente deu de ombros.

— Ele não confia na mercadoria. Confia no transporte.

Por um segundo, as duas se encararam em silêncio.

Valentina passou por ela sem olhar para trás.

Clara apenas seguiu, como uma sombra paga para lembrar quem tinha dono.

No carro, o silêncio era pior.

O motorista que Rafael enviara aguardava de terno escuro, impassível. Nenhuma saudação, nenhum comentário. Apenas abriu a porta e dirigiu.

A cidade passava do lado de fora prédios, avenidas, pessoas apressadas e ela, ali dentro, parecia flutuar fora do tempo.

O destino: o cartório mais antigo de São Paulo.

Nenhum glamour, nenhuma platéia. Apenas duas testemunhas contratadas e o ruído distante de uma impressora velha.

Quando entrou, o ar pareceu mudar.

Rafael já estava lá.

De terno cinza-chumbo, mãos nos bolsos, o relógio no pulso marcando o mesmo horário que o dela. Pontual, frio, imaculado.

Havia algo de irritante na calma dele. Como se o mundo estivesse sempre sob controle, inclusive ela.

— Pensei que fosse se atrasar. Disse sem olhar para ela.

— Não costumo fugir daquilo que escolho. Respondeu. — Mesmo quando não tenho escolhas.

Ele a encarou por um breve instante.

— É um bom princípio pra um casamento.

Valentina respirou fundo e caminhou até a mesa. O juiz de paz ajeitou os papéis, as testemunhas se apresentaram, e o som do relógio pendurado na parede parecia mais alto do que todas as vozes.

— Nome completo da noiva?

— Valentina Moura Diniz.

— Do noivo?

— Rafael Montenegro.

As assinaturas vieram rápidas, precisas.

Nenhum olhar trocado. Nenhum gesto de afeto.

Quando o juiz anunciou a união, a frase soou como uma sentença:

“Declaro-os legalmente casados.”

E foi isso.

Sem aplausos.

Sem anel.

Sem beijo.

Rafael apertou a mão dela com firmeza.

O toque foi breve, mas gelado o suficiente pra deixá-la em alerta.

— Parabéns, senhora Montenegro. O tom era puro aço.

Valentina retribuiu com um olhar que poderia cortar vidro.

— Parabéns, senhor Montenegro. Acabamos de nos ajudar.

Ele esboçou um sorriso discreto.

— Uma ajuda para você de um milhão.

Ela soltou a mão.

— E para o senhor, de bilhões.

O juiz pigarreou, desconfortável, e se apressou em concluir a papelada. Quando as portas do cartório se fecharam atrás deles, o mundo pareceu mudar de textura.

Do lado de fora, uma leve garoa começava a cair.

Rafael ofereceu o braço.

Valentina hesitou, mas aceitou. Não por delicadeza por estratégia.

A imprensa estava ali. Poucos repórteres, escolhidos a dedo. Câmeras preparadas. Um casamento sem amor precisava de uma narrativa, afinal.

Quando ela cruzou o corredor de pedras, os flashes explodiram.

Rafael inclinou-se discretamente e sussurrou perto de seu ouvido:

— Sorria. A farsa começa agora. Meu amor.

Ela virou o rosto e fez exatamente isso sorriu.

Um sorriso elegante, impenetrável, treinado nos corredores da justiça e nas dores da vida.

O mesmo sorriso que se usa quando se assina a própria sentença e ainda precisa parecer grata.

O restaurante ficava no último andar do SkyGlass, cercado por paredes de vidro que revelavam a cidade em tons de cinza e aço. O som suave do piano misturava-se ao murmúrio de taças, distante e elegante.

Era o tipo de lugar onde promessas morriam com classe.

Rafael caminhava ao lado dela, o paletó impecável, os passos firmes. Nenhuma pressa, nenhum traço de emoção. Já Valentina se sentia como uma prisioneira sendo conduzida à própria cela de luxo.

A recepcionista os conduziu até uma mesa isolada, perto da janela. Dois copos, uma garrafa de vinho aberta, guardanapos brancos dobrados com precisão quase militar.

Tudo milimetricamente calculado como ele.

— Achei que um almoço seria mais... civilizado do que uma reunião. Falou enquanto acomodava-se na cadeira.

— Casamento, almoço, contrato. Tudo parece o mesmo pra você, não? Valentina disse enquanto retirava o blazer e apoiava a bolsa na cadeira.

Ele serviu o vinho sem pressa.

— A diferença é que, agora, você também faz parte dos meus contratos.

— Não se iluda, Montenegro. O nome dele soou como uma provocação amarga. — Eu posso ter assinado o papel, mas não assinei a alma.

Um leve sorriso atravessou o rosto dele, o tipo que irritava e fascinava ao mesmo tempo.

— Tem certeza?

O silêncio que se seguiu foi espesso, quase palpável. A cidade abaixo parecia longe demais, o mundo real diluído em vidro e fumaça.

Valentina pegou o cardápio apenas para ocupar as mãos.

— Sempre tão arrogante.

— Sempre tão resistente. Uma combinação perigosa.

Ela pousou o cardápio e o encarou.

— O que exatamente você quer de mim, Rafael?

Ele inclinou-se levemente para frente, os olhos cinzentos presos nos dela.

— Que cumpra o acordo. Que mantenha as aparências. Que seja a mulher que todos esperam ver ao meu lado.

— A esposa troféu. Disse ela, com sarcasmo.

— A parceira estratégica. Corrigiu. — Não confunda vitrine com fraqueza, Valentina.

Ela soltou um riso baixo, sem humor.

— Você fala como se estivesse me fazendo um favor.

— E não estou? Respondeu, calmo. — Te dei poder. Dinheiro. Um novo nome. E uma chance de reerguer o império que o teu pai construiu e perdeu.

— Bonito negócio.

Ele apoiou os cotovelos na mesa, os dedos entrelaçados.

— Não se engane. Eu comprei você, sua lealdade, sua dignidade, se você acha superior a mim, lembre-se o prazo de pagamento da dívida encerra hoje, se não quiser a porta está aberta.

Valentina inclinou-se, os olhos brilhando de raiva.

— E o que acontece se eu quebrar o contrato?

Rafael a observou com uma calma cortante.

— Então eu te destruo, Valentina. Com a mesma elegância com que te dei o sobrenome.

O vinho no copo dela tremeu, como se o próprio cristal tivesse sentido o impacto.

A comida chegou, mas ninguém tocou.

O silêncio entre eles não era vazio era vivo, elétrico.

O garçom afastou-se rápido, como quem pressente o início de uma tempestade.

Rafael tomou um gole de vinho e recostou-se na cadeira.

— Não quero guerras, Valentina, não tenho tempo para brincar com você, tenho um império para gerir e você se lembre, seja a mulher perfeita diante das câmeras qualquer movimento em falso seu, você vai mais fundo do que um dia pensou em ir.

— Então, não tenho escolhas?

Ele sorriu, frio.

— Não.

Do lado de fora, a garoa engrossava. A cidade parecia desaparecer sob o vidro.

Valentina observou o reflexo dele na janela imponente, seguro, e, ainda assim, humano o bastante pra revelar uma sombra de solidão.

Por um instante, quis entender quem era o homem por trás do monstro.

Mas o pensamento morreu rápido.

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