Mundo de ficçãoIniciar sessãoValentina quase deixou o aparelho cair.
Atendeu com o coração preso na garganta. — Alô? Silêncio. Depois, uma voz baixa, firme, impossível de confundir com qualquer outra. — Valentina Diniz. Ela congelou. Aquele timbre tinha o mesmo impacto de uma porta de cofre se abrindo. Lento. Preciso. Irrecusável. — Quem é? — ela perguntou, mesmo já sabendo. — Rafael Montenegro. Uma pausa. — Recebeu minha mensagem? A garganta dela secou. — Recebi… mas isso é absurdo. Eu não— — O absurdo, Valentina, é você achar que pode resolver sozinha uma dívida daquele tamanho. O tom dele não era de arrogância. Era de certeza. Ela se sentiu nua, apesar de estar no próprio carro estacionado. — Não sei se entendi sua proposta. — Vai entender pessoalmente. Outra pausa. — Hotel SkyGlass. Suíte 1307. Às nove. — Eu não confirmei que vou — retrucou. — Confirmou atendendo. E desligou. Sem despedida. Sem justificativa. Sem espaço para recusar. O silêncio no carro era tão denso que parecia alguém sentado no banco de trás. Valentina apoiou a testa no volante, sentindo o mundo girar. — Meu Deus… no que eu estou me metendo? O ponteiro do relógio parecia zombar dela enquanto marcava 20h47. Valentina ajeitou o cabelo pela terceira vez diante do espelho retrovisor. Estava parada em frente ao Hotel SkyGlass, o local mais sofisticado e intimidador que já visitara sozinha. Respirou fundo, tentando acalmar o próprio coração. Ainda era cedo, mas não conseguia mais ficar parada. Desligou o carro, pegou a bolsa com a cópia da mensagem e entrou. A recepção era silenciosa, envolta em tons dourados e mármore escuro. Tudo ali parecia polido demais, distante demais como se o ar tivesse sido filtrado para evitar qualquer traço de caos humano. O elevador subiu devagar, parando com um toque suave no 13º andar. Ela caminhou até a porta 1307. As letras em dourado pareciam observá-la, como um aviso. O coração batia no mesmo ritmo da luz do corredor, piscando em intervalos frios. Por um instante, ela pensou em voltar. Imaginou o que o pai diria se a visse ali, uma Diniz, prestes a vender o próprio nome. O orgulho pesava mais que o medo, mas o medo... era o que a movia. Hesitou. A mão pousou na madeira, trêmula, mas antes que pudesse bater, a porta se abriu. E então, ela viu. A presença dele preencheu o espaço antes mesmo de qualquer palavra. Era o tipo de homem que não precisava levantar a voz para ser ouvido. A figura masculina que ocupava o vão da porta tinha uma presença impossível de ignorar. Alto, de ombros largos, pele morena clara, cabelos escuros penteados com precisão cirúrgica. Vestia uma camisa branca de linho dobrada nos antebraços e calça social cinza. Nenhuma gravata, nenhum exagero. Apenas o suficiente para parecer no controle de tudo. Seus olhos cinza-claros como aço molhado encontraram os dela com calma. — Valentina Diniz. Ela engoliu em seco. Conhecia aquele rosto. Já o vira em capas de revistas, em reportagens sobre investimentos milionários, fusões agressivas, decisões impiedosas no mundo corporativo. Rafael Montenegro. — Rafael Montenegro. Disse ela, mantendo a voz firme, mesmo que algo em sua espinha gritasse para correr dali. — Entre. Foi tudo o que ele disse. O tom era neutro. Nem simpático, nem hostil. Apenas direto. Ela entrou. A suíte era ampla, silenciosa, com móveis minimalistas em tons de cinza e preto. Sem exageros. Sem flores. Sem perfume. Um espaço de negócios. Havia uma mesa baixa ao centro, duas poltronas de couro e uma garrafa de água aberta ao lado de duas taças. Ele a indicou com a mão para que se sentasse. Valentina obedeceu. — Você recebeu minha proposta. Ele começou, direto, sentando-se na poltrona à frente dela. — Está aqui porque respondeu. Ela assentiu, sem desviar os olhos. — Estou aqui para entender. Não para aceitar nada ainda. — Claro. Ele respondeu. — É uma decisão que exige frieza. Não emoção. O tom dele soava quase como uma provocação. Como se quisesse testar o quanto de gelo havia no sangue dela. Valentina se inclinou ligeiramente para trás, medindo cada sílaba. Não queria que ele visse a mão dela tremer. Havia algo no modo como ele falava... como se cada palavra fosse escolhida com o mesmo cuidado com que um cirurgião seleciona seus instrumentos. Sem rodeios. Sem desperdício. — O que exatamente você quer? Rafael inclinou-se levemente para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Um casamento. Legal. Formal. Com cláusulas bem definidas. Sem envolvimento emocional. Sem promessas românticas. Em troca, você receberá um milhão de dólares no momento da assinatura e duzentos mil mensais durante o contrato de doze meses. Ela ergueu as sobrancelhas, como se esperasse ouvir a parte absurda. Mas ele não sorriu. Nem se explicou. Apenas esperou sua reação. — E por que você precisa disso? — Estou fechando uma negociação internacional com um grupo conservador. Eles preferem homens casados. Homens com... estabilidade. E, bem, estar casado resolve isso. Valentina permaneceu em silêncio por alguns segundos, avaliando. — E por que eu? Ele não hesitou. — Seu nome é limpo. Sua imagem é forte. Sua dor recente torna a sua aceitação... mais crível. E você precisa exatamente do valor que estou oferecendo. A palavra “dor” pesou no ar. Ela percebeu o quanto ele sabia sobre o funeral, sobre as contas, sobre as noites em claro. Era como se tivesse entrado na casa dela e visto o luto espalhado em cada cômodo. Ela prendeu a respiração. O jeito como ele expôs tudo, tão objetivo, tão cru, a fazia se sentir despida. Não de roupas. De intenções. Ele a via com clareza demais. — Você investigou minha vida. Ela acusou, num sussurro. — Investigo tudo. Antes de qualquer decisão. É assim que evito arrependimentos. Ela cruzou as pernas, tentando se recompor, e olhou ao redor antes de voltar os olhos para ele. — Isso não é um pouco... desumano? — É lógico. Ele respondeu, sem desviar. — Você pode chamar de frieza. Eu chamo de clareza. — Você não acredita em amor? — Acredito que o amor, assim como qualquer contrato mal definido, gera prejuízos. Valentina sentiu uma mistura de raiva e fascínio. Havia algo em Rafael que a fazia querer desafiá-lo, provocá-lo. Ele parecia estar sempre três passos à frente, como se soubesse exatamente o que ela pensaria antes mesmo de pensar. — E se eu disser que não? Provocou, erguendo o queixo. — Você tem esse direito. Mas terá que encontrar outro meio de salvar o legado dos seus pais. E o tempo está contra você. A menção aos pais a acertou como uma flecha silenciosa. Rafael abriu uma pasta de couro preta e retirou um documento. Estendeu-o com naturalidade, como quem oferece uma xícara de café. — Leia. Com calma. Mas saiba: amanhã, ao meio-dia, essa oferta desaparece. Ela pegou o contrato. As mãos estavam um pouco frias, mas firmes. Folheou lentamente. As cláusulas estavam ali, como ele dissera. Sigilo absoluto. Convivência. Comportamento público de casal. Nenhuma obrigação de intimidade, a menos que consentida. Em caso de gravidez, renegociação. Termo inquebrável por doze meses. Quando ergueu os olhos, encontrou os dele já fixos nela. — E se eu engravidar de propósito? Perguntou, desafiadora. — A cláusula me protege. Mas, mais importante... eu sei ler pessoas. E você não é o tipo de mulher que usaria uma criança como moeda. Ela engoliu seco. Pela primeira vez, sentiu o peso daquele olhar. Não era apenas frio. Era penetrante. Ele a conhecia demais para um estranho. E, mesmo assim, ela não se sentia exposta de forma vulgar. Era quase... respeitada. Vigiada. Mas respeitada. Levantou-se devagar, com o contrato nas mãos. — Vou pensar. E volto com minha resposta. Rafael assentiu com um leve movimento de cabeça. — Estarei aqui. À sua espera. Ela caminhou até a porta. E antes de sair, virou-se por instinto. — Você sempre vive assim? Calculando tudo? Ele a observou por um segundo mais longo do que o necessário. — Sempre. Respondeu, por fim. A porta se fechou devagar, deixando no ar o cheiro de café e perigo. No elevador, Valentina encostou a testa na parede fria e soltou o ar que vinha prendendo.






