A respiração de Kael estava acelerada quando abriu os olhos. Seu peito subia e descia de forma irregular, como se tivesse corrido uma longa distância. O quarto ao redor permanecia imóvel, mas o ar parecia denso, abafado. A única luz vinha da lua, filtrada pelas cortinas entreabertas.
Tânia era sua predestinada. O destino deles estava traçado. Mas tudo o que sentia agora era o toque de Camélia. Kael levantou-se de súbito, irritado. Seu corpo clamava por ação, por qualquer coisa que silenciasse aquela inquietação. O cheiro dela impregnava o ambiente, como se quisesse dominá-lo. Seu lobo reagia, inquieto, mas ele se recusava a ouvir. Passou as mãos pelo rosto, afastando o incômodo. Não podia se dar ao luxo de distrações. Como Alfa Supremo, sua responsabilidade ia além da matilha. Cada líder o via como referência. Até os que o desafiavam precisavam respeitá-lo. Ele precisava manter a ordem em Serra dos Riachos. — Isso não é sobre você, Kael — murmurou para si mesmo, tentando afastar a sensação irritante. Mas algo mais o incomodava. Pequenos rumores. Davi estava se movendo, reunindo lobos desconhecidos, criando alianças na calada da noite. Se Kael estivesse certo, isso era apenas o começo. Ele saiu do quarto, os pés descalços encontrando a madeira fria. A casa estava mergulhada no silêncio, apenas o vento soprava entre as árvores. Ao abrir a porta da frente, o ar gelado o atingiu, carregando consigo o cheiro da serra. A lua pairava alta, mas Kael não sentia sono. Seu lobo exigia mais do que reflexões silenciosas. Respirou fundo, fechou os olhos e se entregou à transformação. O calor percorreu sua pele. Ossos se alongaram. Músculos se expandiram. Em segundos, o homem deu lugar ao lobo. Ele ergueu a cabeça, sentindo o vento no pelo dourado, os sentidos absorvendo cada detalhe ao redor. Então, correu. Deslizou pelas ruas de paralelepípedo e trilhas estreitas da floresta, os músculos movendo-se com precisão. Patrulhar a cidade costumava acalmá-lo. Mas não dessa vez. Dessa vez, algo o guiava. Algo que ele se recusava a nomear. Flor de laranjeira. Kael parou bruscamente, os olhos dourados faiscando na escuridão. O aroma veio forte, puxando-o para uma direção errada. A mandíbula se tensionou. Tentou se concentrar nos cheiros da noite: fumaça de lareiras, ervas queimando, a umidade densa da mata. Mas, impregnando o ar, prendendo-se a ele como uma lembrança impossível de apagar, estava ela. Rosnou baixo, irritado consigo mesmo. Precisava se afastar. Focar no que importava. Mas seus pés não obedeceram. O aroma persistia. E a cada passo, ele sabia que isso não estava ajudando. Frustrado, tomou a única decisão lógica: voltar para casa, ao chegar, sacudiu o corpo antes de reassumir a forma humana. Os primeiros raios solares aqueciam sua pele nua quando ele pegou a roupa de reserva que sempre deixava na entrada. Mas, mesmo depois de se vestir e fechar a porta atrás de si, o perfume dela ainda pairava no ar. Pela primeira vez, Kael se perguntou se o cheiro não estava apenas impregnado no ambiente, mas nele. Kael decidiu tomar um banho. A água quente ajudou a clarear seus pensamentos, mas não apagou a sensação persistente de que algo dentro dele estava mudando. Assim que se vestiu, a voz firme da mãe o chamou do andar de baixo. — Kael! Azíria está te esperando no gabinete. Ele soltou o ar lentamente, passou a toalha pelos cabelos e a jogou de lado. A casa dos Braga era grande, rústica, com paredes de pedra e madeira escura, carregando o peso da linhagem lupina. O gabinete, nos fundos, era o centro das decisões importantes. Azíria já estava sentada à mesa, postura impecável, olhos atentos. Suas longas tranças caíam pelos ombros, adornadas com pequenos enfeites dourados que refletiam a luz da lareira. Vestia tons terrosos, que acentuavam sua pele quente e seu olhar afiado. — Tava fazendo o quê, Kael? Seu cheiro tá diferente. — A provocação veio com um meio sorriso. Ele sentou-se à frente dela, apoiando os antebraços na mesa. — Eu estava patrulhando. — Aham, conta outra. — O tom dela permaneceu calmo, mas carregado de malícia. Kael cerrou a mandíbula. — Diz logo por que tá aqui a essa hora. Azíria inclinou a cabeça, deixando o silêncio se prolongar. — O Conselho já sabe que chegou mais um Alencar. Camélia. E, ao que tudo indica, tem mais um vindo. Ele não reagiu, mas sua postura enrijeceu. Se o Conselho estava atento, havia movimentações nos bastidores. — Eu já sabia disso. — E também sei que você não gostou. — Azíria cruzou os braços. — Mas tem mais coisa acontecendo, não tem? Eu sinto. Os ventos estão inquietos desde que os Alencar voltaram, e agora estão ainda mais falantes. Kael desviou o olhar para a lareira. Mas isso não ajudou. O cheiro de flor de laranjeira ainda estava lá, impregnado em sua pele como uma marca invisível. Desde que Camélia chegou, nada mais parecia no lugar. Tentava ignorar. Se convencer de que era coincidência. Mas cada instinto gritava o contrário. Nunca sentira isso com Tânia. — Ela é estranha. Diferente. Preciso entender quem ela é e de que lado está. — Claro. — Azíria concordou, os olhos brilhando com percepção afiada. — Mas seja honesto consigo mesmo. É só por isso? Kael apertou a mandíbula. O peso daquela pergunta se instalou nele como uma sombra. Azíria se inclinou ligeiramente para frente, a voz mais firme. — Carlina começou a espalhar rumores. Quer que todos acreditem que a neta dos Alencar é a loba que vai te pôr à prova. — Azíria sorriu, zombeteira. — Eu não acredito nessa profecia. Acho que você e Tânia não são predestinados. Se fossem, o vínculo já teria se formado. Mas vocês estão muito ocupados se deixando manipular. Já te disse que é preciso agir, mas você se perde na incerteza e no maldito orgulho. — Sei e escuto o que diz, mas tem alguma prova de que essa profecia não é real? De que foi invenção da Carlina? Não posso desacreditar só porque você não gosta dela. Tânia é minha predestinada. Azíria riu, mas seus olhos brilharam com algo além de diversão. — Não é questão de gosto. Eu vejo além, Kael. Você quer acreditar na versão confortável e não percebe as rachaduras nela. Ele sustentou o olhar dela, a tensão crescendo. Abriu a boca para responder, mas Azíria foi mais rápida. — Você realmente acha que a saída dos Alencar foi coincidência? — Ela se inclinou para frente, a voz em tom de conspiração. — Já se perguntou por que eles voltaram agora? Pelo amor de tudo que é sagrado, presta atenção nas coisas. Você é o Supremo e tá se deixando enganar pela Carlina? Tô cansada de falar e não ser ouvida. Sou uma guardiã anciã, uma das mais poderosas no comando. Kael até então estava focado em Camélia, mas algo no jeito como Azíria falou o incomodou de uma forma diferente. As palavras dela soaram como um presságio. — O que está tentando insinuar? — ele perguntou, por fim. — E caralho, eu sei quem sou e meu papel. Mas cresci ouvindo a matilha inteira dizer que Tânia era minha predestinada. A profecia, seja falsa ou não, fala de alguém que viria me pôr à prova. E se for verdade? O que você quer que eu faça? Já fizemos todos os passos e não encontramos nada. Azíria desviou o olhar, impaciente. Ela entendia o conflito de Kael, mas temia que, quando ele finalmente visse a verdade, fosse tarde demais. Ele era jovem, e assumir o cargo de Supremo aos dezoito anos era um peso enorme. Massageando a têmpora, Azíria o encarou e disse: — Eu sei que é difícil de acreditar. Mas você confia em mim, certo? Sou sua conselheira. A história de Carlina não b**e. Estamos vendo movimentos estranhos. Eu vejo caminhos se abrindo e, acredite, a guerra que vem não será bonita. Você precisa sair dessa bolha e confiar em mim. — Você viu caminhos, certo? Em algum deles havia alguma prova contra Carlina? Não? Então não temos motivo para questionar a segunda anciã mais forte da cidade. — Ele suspirou, exasperado. — Se não houver provas, vou continuar acreditando na profecia dela. Não podemos ignorar que a profecia da Carlina complementa a da sua mãe, e perdemos sua mãe no mesmo dia em que ela a recebeu. Azíria o encarou com um sorriso enigmático, sem responder de imediato. O silêncio entre eles se arrastou, tenso. Kael apertou a mandíbula, o estômago revirando de frustração. — Se tem algo a dizer sobre Camélia ou a profecia, fale agora. Caso contrário, assunto encerrado. — A voz dele saiu ríspida. — Sou o Supremo. Não posso desrespeitar nossas leis e nosso povo só porque você não acredita na Carlina. Azíria se levantou lentamente, ajeitando as mangas da roupa, como se a tensão não a afetasse. Mas Kael sentiu o cheiro de decepção. — Não vou implorar para que confie em mim, Kael. Carlina é ardilosa, e eu a conheço o suficiente para saber que ela quer algo. Não desconte suas frustrações em mim. Ele suspirou, sentindo-se exausto. — Perdão. Só estou com muita coisa acumulada. Confio plenamente em você, mas preciso seguir meus instintos. — Então faça isso direito, bonitão. Ou pode ser tarde demais quando finalmente perceber a merda toda. Kael não respondeu, apenas a observou sair. Fechou os olhos por um instante, soltando o ar devagar. Seus pensamentos eram um caos. Pegou a jaqueta e saiu. Se precisava de respostas, só havia um lugar onde poderia consegui-las: a casa de Camélia.