Kael inspirou fundo antes de bater na porta dos Alencar. Ele sabia que Camélia abriria. O cheiro de flor de laranjeira o atingiu em cheio. Seus olhos deslizaram rapidamente pelo rosto dela, e, por um momento, sentiu o rubor subir à pele, lembrando-se do sonho que tivera com ela. Idiota, pensou, forçando-se a manter a postura firme.
Camélia o encarava com confusão e desconfiança. Antes que alguém falasse, Júlio se adiantou, apertando a mão de Kael e chamando todos para dentro. — Que bom que você veio, Kael. Entre. Kael notou como Júlio e Camélia reagiam a ele. O homem parecia desconfiado, enquanto Camélia estava inquieta. Eles pareciam ignorar o que ele representava, como se não soubessem das lendas da cidade. Aquilo o pegou de surpresa. Eles realmente não sabiam? Cauã, de braços cruzados, o observava com evidente antipatia. — Quem você pensa que é para falar assim? — disse ele. Júlio levantou a mão, impedindo que qualquer um falasse. — Ele tem o direito de saber, e é o Líder Supremo da matilha. Merece respeito. Camélia arregalou os olhos. — Líder Supremo? Matilha? Que? — perguntou, confusa. Cauã abriu a boca para contestar, mas Júlio impôs silêncio novamente. — Esperem. Há algo que precisam entender. Safira nos alertou, na noite em que morreu, sobre a profecia. Ela achou que era sobre Flor e seu pai, mas, com nossa filha conhecendo seu marido, começamos a acreditar que ela estava errada. A profecia tem a ver com você, Kael. Kael já sabia disso, mas ouvir em voz alta aumentou o peso das palavras. Seu olhar encontrou o de Camélia, e ele lembrou da profecia de Carlina. Ele começava a acreditar que Camélia era a mulher da profecia. Camélia franziu a testa, incomodada com o olhar de Kael. Cauã parecia cada vez mais irritado. — Que profecia? Do que estão falando? Flor e Gustavo se entreolharam, confusos. — O que o senhor quer dizer, Júlio? — perguntou Gustavo, cauteloso. Madalena suspirou, olhando para os netos antes de se voltar para Kael. — Vocês precisam ouvir com atenção. Há coisas que ainda não podemos revelar, mas o que precisam saber agora é que isso não começou hoje. Começou quando Safira recebeu a profecia. Kael sentiu a tensão aumentar. Camélia e Cauã estavam cada vez mais impacientes, e Flor e Gustavo, embora mais calmos, ainda estavam inquietos. Júlio falou, quebrando o silêncio. — O que vou contar não é lenda, nem superstição. A Serra dos Riachos sempre foi um lugar diferente. As histórias antigas não são apenas histórias. Elas são verdades ocultas. Camélia franziu o cenho. — O que isso quer dizer? Verdades ocultas? Pelo amor de Deus, parem de enrolar e falem logo tudo de uma vez. Júlio ignorou a neta e continuou. — As lendas sobre lobos são reais. E nós somos uma família de lupinos. O silêncio tomou conta da sala. Camélia olhou para o avô, incrédula. Cauã soltou uma risada seca. — Lobisomens são reais? Conta outra. Kael observou tudo em silêncio, vendo as peças do jogo se moverem sem que percebessem. Madalena, com autoridade, interveio. — Não lobisomens. Lupinos. Lobos. Há uma diferença. Eles não são monstros, nem são apenas mitos para assustar crianças. São uma parte da história desse lugar e sempre existiram para manter um equilíbrio. — Ok, se vocês querem brincar de lendas, contos de fadas ou sei lá mais o que, ao invés de serem diretos e verdadeiros, então eu sou um vampiro e brilho na luz do sol. — Ele falou irritado. — O que vocês tão falando não faz o menor sentido, como assim lupinos? — Ah, não. Vampiros não existem mesmo, você ouviu o que o seu avô falou?— Kael respondeu em tom de ironia — Você é um lobo. — Equilíbrio? — Camélia cortou seu irmão antes que ele respondesse Kael e eles acabassem ficando sem resposta . Camélia olhou de relance para os pais e piscou algumas vezes, como se tentasse encontrar um erro na cena diante dela. — Vocês sabiam disso? Flor suspirou. — Não fazíamos ideia querida, estamos tão perdidos quanto vocês dois. Pai, mãe, explique isso por favor. Não consigo entender. Cauã bufou, passando a mão pelo cabelo, visivelmente irritado. — Isso não faz o menor sentido! Como ninguém nunca viu nada? Como isso pode ser real? Kael voltou a falou, sua voz saindo controlada e fria: — Porque não queremos que quem não é da nossa matilha saiba. Os olhos de Cauã se voltaram para ele imediatamente. O silêncio que seguiu foi denso. Camélia olhou para ele, os olhos brilhando com uma mistura de confusão e algo mais profundo. Cauã, por outro lado, deu um passo para frente, descrente. — Você tá falando sério? Você... é um desses lobos? Kael não se moveu. — Sou. A incredulidade de Cauã se transformou em algo mais agressivo. — Isso é loucura! Vocês estão todos loucos! — Ele apontou para os mais velhos e depois voltou para Kael. — E você... você acha que isso é normal? Você se transforma? Sai por aí caçando? O quê? Kael respirou fundo. — Eu não preciso te provar nada. —Disse ele irritado com a acusação.— Além disso —ele acrescentou olhando diretamente para Cauã — Me respeite, estou cansando do seu tom. Cauã cerrou os punhos, mas não respondeu, isso só o irritou ainda mais. Camélia, no entanto, parecia dividida. A revelação pesava sobre ela, mas algo em sua expressão indicava que ela não conseguia descartar a possibilidade tão facilmente. De repente, Kael sentiu um cheiro adocicado se intensificar. Flor de laranjeira. Ele se contraiu involuntariamente. Maldição. A profecia. Aquela maldita profecia que o ligava a Tânia. Ao mesmo tempo, Camélia levou a mão ao pulso, uma expressão de desconforto cruzando seu rosto. Ela franziu o cenho, massageando a pele ali, como se algo estivesse errado. Kael também sentiu um leve formigamento no próprio pulso, mas ignorou. Aquilo só podia ser um efeito psicológico da profecia. Só podia. Não tinha como Carlina ter enganado a todos por tanto tempo, eles buscaram por provas e Azíria não tinha conseguido desmentir Carlina, não tinha mesmo como não ser real. — E o que isso significa para nós? — Camélia perguntou, sua voz um pouco mais hesitante do que antes. — O que isso tem a ver conosco? Madalena a olhou com um misto de compreensão e algo mais, algo que Kael não gostava de ver. Ele queria saber o que eles estavam escondendo. — Significa que, gostando ou não, vocês fazem parte dessa história agora. E precisam estar prontos para o que vem a seguir. — Preciso saber o que vocês sabem. Agora. — Kael disse seco, com autoridade exalando na sua voz, mas não teve efeito. — Perdão, Supremo, mas não podemos mesmo revelar agora. Não é hora, Safira deixou a profecia bem selada, até o momento certo chegar. — Madalena disse. Camélia engoliu em seco. Cauã balançou a cabeça, ainda recusando-se a aceitar. Kael olhou para todos e sentiu algo estranho dentro de si. Ele sempre soube que aquela profecia mudaria tudo. Ele inspirou fundo antes de se afastar da sala. Sua mente ainda pesava com as palavras de Júlio, com a reação de Camélia e, principalmente, com a raiva velada de Cauã. Ele podia sentir os olhos do outro queimando em suas costas enquanto se movia para a saída, mas não se deu o trabalho de olhar para trás, já tinha conseguido o que queria: entender o que estava acontecendo. Ou pelo menos era o que tentava convencer a si mesmo, abrir a porta, o ar frio da noite o atingiu, mas não foi isso que o fez hesitar por um segundo antes de cruzar a soleira. Foi o cheiro de flor de laranjeira. Não era apenas um traço no ambiente. Estava preso a ele, impregnado na roupa, na pele. Seu lobo se agitou de maneira sutil, como se reconhecesse algo que sua mente insistia em negar. Ele cerrou os dentes, forçando seus músculos a permanecerem relaxados, isso não significa nada. Ele deu um passo para fora. Mas então, sentiu, um leve formigamento subindo pelo pulso. Um calor estranho, desconfortável. O mesmo que sentira antes, quando seus olhos cruzaram com os dela. Ele flexionou os dedos, tentando ignorar a sensação. Não era possível. O vínculo dele ainda não tinha despertado, não completamente. A profecia deixava claro que ele e Tânia estavam destinados. Isso aqui, isso era apenas um efeito colateral. Uma maldita coincidência. Seus olhos, no entanto, traíram sua determinação, antes de partir, ele lançou um último olhar para dentro da casa e encontrou Camélia ainda ali, observando, por um segundo, tudo ao redor pareceu ruir. Ele deveria ir. Ele tinha que ir, mas não conseguia se mover. Até que Camélia piscou e desviou o olhar, levando a mão ao próprio pulso de forma involuntária. Foi o suficiente, Kael respirou fundo, virou-se e caminhou para longe. Cada passo parecia ecoar mais alto do que deveria e mesmo quando a casa ficou para trás, quando a escuridão da noite o envolveu por completo, ele ainda sentia o cheiro dela e calor no pulso. E a maldita sensação de que algo, tudo, tinha acabado de muda