Ponto de vista: Leonardo Vasconcellos
— Ei, espera!
Mas ela não esperou. Saiu correndo. Recebeu uma notícia, e eu sei que não é boa. Do jeito que ela ficou pálida... é coisa séria. E eu entendo — veio do hospital. Já recebi ligações assim. Eu sei como é.
— Senhor? Está me ouvindo?
A voz do Pedro, meu motorista, me puxou de volta. Eu estava paralisado. Me dirigi até o carro, e ele já ia abrir a porta para mim. Levantei a mão.
— Não precisa.
Não sou nenhum inválido. Detesto esse tipo de servilismo exagerado. Há quem pense que estar acima do mundo significa ser arrogante. Eu estou, sim, acima de muitos. Mas nunca acima da dignidade de ninguém.
Entrei no carro, mas meus pensamentos ficaram nela: Aurora. Um nome leve, bonito. Maldito nome. Não posso estar pensando nela assim. Isso não está certo.
Olhei pela janela e vi Ricardo saindo do prédio. Peguei meu celular.
— Alô?
— Ricardo, me segue até em casa. Preciso falar com você.
Desliguei antes que ele respondesse. Ele conhece meu tom. Sabe quando é sério.
— Pedro, para casa.
Ele assentiu, e seguimos. Pedro tem uns cinquenta anos. Está comigo desde que assumi a empresa, quando meu pai se aposentou. Ou melhor... tentou. Depois que meu irmão morreu, ele nunca mais foi o mesmo. Nem eu. A dor o consumiu. A mim também. Talvez até mais. Porque, no fundo, a culpa... é minha.
Fechei os olhos e tentei afastar os pensamentos sombrios. E, claro, voltei a pensar nela.
Aurora.
Os olhos dela brilhando enquanto me encarava. O jeito como mordeu o lábio, pensativa... tinha algo de inocente, de humano. Quase... fofo.
Não posso pensar nela.
Mas pensei.
O caminho todo.
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— Ela não me sai da cabeça — murmurei, jogando a gravata sobre a mesa de vidro.
Ricardo arqueou uma sobrancelha, debochado, com o copo de uísque na mão. Tinha acabado de chegar comigo. Contei tudo: o esbarrão, o olhar, o nome.
— A garota com quem você esbarrou hoje?
Assenti, encarando as luzes frias de São Paulo pela janela da cobertura. Nenhuma delas me fazia esquecer os olhos dela.
— Tinha algo nela... como alguém que está se afogando, mas ainda tenta respirar.
— E por que isso te importaria? — zombou. — Você é Leonardo Vasconcellos. Tem tudo. Empresas, contratos, pretendentes falsas no e-mail...
— Justamente. Gente fingida. Ela não era.
Ficamos em silêncio. Depois, me virei para ele:
— Preciso que descubra quem ela é. Nome. Endereço. Tudo.
— Tá brincando, né? Só porque esbarrou nela?
— Sim — respondi firme. — E porque meu instinto raramente erra. O nome dela é Aurora Lemos.
— Como sabe?
— Ouvi ao telefone.
— Ok. Você terá tudo sobre ela amanhã. Na sua mesa.
Depois de alguns copos de uísque, Ricardo foi embora. E eu fiquei ali, sozinho, com os pensamentos girando. Tomei um banho quente. Achei que ajudaria.
Não ajudou.
Passei a noite me virando na cama, até o sono vencer.
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Na manhã seguinte, às sete em ponto, Ricardo entrou no escritório com uma pasta preta.
— Leonardo. Aqui está.
Meu coração acelerou. Ele colocou os papéis sobre a mesa.
— Nome: Aurora Lemos. 23 anos. Último ano da faculdade. Desempregada. Vive com a irmã mais nova, Sofia. A mãe foi assassinada há 14 anos. O caso foi encerrado sem solução.
Engoli seco.
— E o pai?
— Faleceu ontem. Ataque cardíaco. Estava trabalhando dobrado para pagar o tratamento da filha. Sofia tem uma doença no coração. Precisa de um transplante urgente. Mas... elas não têm recursos.
Meus dedos apertaram os braços da cadeira.
Olhei a foto dela. Cabelos desgrenhados. Olhos cansados. Mas uma expressão... viva. Forte. Humana.
E, no meio daquela realidade brutal, eu tomei uma decisão.
— Ela precisa de ajuda.
— Vai doar dinheiro? — Ricardo zombou.
— Não. — Levantei-me. — Vou fazer uma proposta. Um contrato.
Um contrato que não será só mais um negócio. Será o ponto de virada.
Para nós dois.
— Consegue o endereço do enterro do pai dela.
— Vai até lá?
— Claro. Deixe o endereço na minha mesa.
— Ok, sem estresse. Eu consigo.
Ele saiu, falando ao telefone na sacada. Eu sabia que ele daria um jeito.
Ele sempre dá.
Mas quanto mais so meu pensamentos vão para ela, mais me lembro que não posso me dar ao luxo de me apegar. Não agora.
Eu vou ao velório do pai dela com um objetivo, que concerteza vai beneficiar os dois.
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“Os mortos não prejudicam os vivos.”
A camisa branca repousava sobre a cama, cuidadosamente passada pela dona santa, como se ela soubesse que hoje era dia de luto. Vesti-me em silêncio. Tudo em mim era silêncio. A gravata preta apertava meu pescoço como um lembrete: hoje não era dia de negócios, mas de despedidas.
No espelho, encarei minha própria expressão. Rígida. Fria. Era assim que as pessoas me viam — e talvez, no fundo, fosse isso mesmo que eu era. Mas algo naquela manhã tinha gosto de aço na boca. Como se o mundo, pela primeira vez em muito tempo, estivesse prestes a me confrontar com algo que nem todo o meu dinheiro ou influência podia controlar.
Desci até a garagem. O motor do carro rugiu com força controlada, como tudo em minha vida. O endereço do cemitério estava salvo no GPS. Nem precisei digitar. Já sabia onde era, eu avia decorado ele.
Durante o trajeto, permaneci em silêncio. Mas minha mente gritava. Pensava na Aurora. Na forma como ela tinha me olhado aquele dia , como se estivesse pronta para me enfrentar, mesmo com o mundo caindo aos pedaços ao redor dela.
Corajosa. Orgulhosa.
E agora, sozinha.
Estacionei no canto mais discreto do cemitério. Não queria chamar atenção — ainda que, de alguma forma, minha presença sempre chamasse. Caminhei entre os túmulos, com passos firmes, as mãos nos bolsos do paletó e o olhar fixo. Evitei cruzar os olhos com as outras pessoas. Elas cochichavam. Sempre cochicham. De mim, de quem sou, de quem fui.
Mas nada disso importava.
Porque, no instante em que a vi... o mundo ficou em silêncio.
Aurora estava ali, parada, com os olhos vermelhos e o rosto pálido, segurando a mão da irmã mais nova. Os traços delicados estavam endurecidos pela dor. E ainda assim, havia uma força nela que me desarmava. Como alguém que perdeu tanto... podia ainda parecer tão viva?
Esperei o enterro terminar. Esperei que todos fossem embora. E, quando ela começou a caminhar para longe, segui seus passos.
— Aurora.
Ela parou. Virou-se lentamente, os olhos brilhando de raiva contida.
O que você está fazendo aqui? — ela perguntou, sem sequer me encarar.
— Meus sentimentos, Aurora — murmurei, a voz baixa e sóbria, como se cada palavra pesasse em meu peito.
Ela finalmente me olhou. E no silêncio que se seguiu, não houve necessidade de explicações. Havia mais verdade naquele instante quieto do que em qualquer discurso. Eu sabia que, por dentro, ela se perguntava o que eu estava fazendo ali… especialmente agora, quando ela fazia de novo aquele gesto com os lábios — aquele leve apertar que ela sempre fazia quando esta a pensar demasiado.
— Posso te dar uma carona? — arrisquei, mesmo sabendo qual seria a resposta.
Ela balançou a cabeça, os olhos fixos no túmulo do pai, como se ainda esperasse ouvir sua voz.
— Obrigada, senhor… mas vou pegar um ônibus.
Esperei mais alguns segundos. E então fui direto:
Tenho uma proposta pra você. Pode parecer... insensível, mas é a única hora em que sei que você me ouviria.
Ela virou lentamente o rosto pra mim, arqueando uma sobrancelha, os olhos estreitos e frios.
— Eu sei que não é a hora ideal. — A voz dele soou baixa, contida. — Mas não posso mais adiar isso.
Aurora virou lentamente, ainda com os olhos vermelhos. Ela o olhou, tentando entender.
— O quê?
Eu inspirei fundo, como se precisasse de fôlego para tirar o peso das palavras.
— Você precisa de dinheiro. Sua irmã precisa de cuidados. E eu preciso... de um contrato de fachada. — Mantevi o meu olhar fixo nela. — Um casamento. Só isso.
Aurora piscou, confusa. A dor do luto ainda latejava, e conseguia ver isso.
— Você está me pedindo em casamento... aqui? Agora?
— É um contrato, Aurora. Só isso. Sem sentimentos, sem expectativas. Eu resolvo sua situação financeira. Em troca, você me ajuda a fechar o contrato que minha diretoria está pressionando. Eles querem estabilidade. Um homem casado parece mais... confiável.
Ela soltou um riso curto, sem humor.
Ela me olhou como se eu tivesse cuspido fogo em cima do caixão.
— Você só pode estar maluco — disse, com a voz carregada de incredulidade. — Eu acabei de enterrar o meu pai. Nem deixaram a terra assentar, e você me aparece com propostas?
— Os mortos não prejudicam os vivos — respondi, firme.
Ela arregalou os olhos. E então soltou um riso seco, como se aquilo fosse o mais absurdo que já tinha ouvido naquele dia.
— Sabe, eu devia te dar um tapa. Só não dou porque estamos num cemitério.
Você devia tatuar isso na testa. Assim não precisa repetir quando for comprar a alma de alguém na próxima vez.
— Não estou comprando sua alma. Estou oferecendo uma chance.
— Uma chance de me vender — ela cuspiu as palavras, sarcástica. — Como uma qualquer. Como se o luto fosse uma janela de oportunidade pra você.
Suspirei. A mulher era mais afiada do que imaginei. Mas eu não podia recuar agora. Tirei um cartão do bolso interno do paletó e o estendi.
— É exatamente por isso que eu vim. Porque sei que você precisa.
— Preciso? Do quê? De vender a alma pro diabo?
— De ajuda. Dinheiro. Recursos. Influência. Posso salvar a sua irmã.
Ela me encarou com um misto de fúria e... medo. Como se, por um segundo, ela soubesse que eu estava certo. E esse era o pior tipo de verdade.
— Não quero nada de você — respondeu, dando meia-volta. — Não hoje. E talvez... nunca.
Ela caminhou até o túmulo do pai, ajoelhou-se, e tocou na lápide ainda úmida com a palma da mão. Eu observei em silêncio, respeitando o momento.
— Quando estiver pronta para ouvir, saberá onde me encontrar.
Deixei o cartão ali, bem em cima da terra recém-revirada.
Desculpa, senhor Lemos — murmurei baixinho. — Mas a sua filha vai ter que escolher entre a dor e a sobrevivência. E eu sou a única ponte.
Levantei e fui embora sem olhar pra trás.
Não havia mais nada a ser dito.
Ainda.
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