Onde os sussurros são mais afiados que as lâminas
Narrado por Norman Andrade Paixão O elevador subiu em silêncio absoluto, mas dentro de mim parecia que tinha um tambor de escola de samba batendo no peito. Cíntia ao meu lado sorria tranquila — como se o último andar da Cassani’s fosse só mais um lugar comum. Pra mim, era o Olimpo. O visor digital marcou o número final e o ding soou como um anúncio de guerra. As portas se abriram. A primeira surpresa: não era um andar, era um universo. Salas envidraçadas ocupavam as laterais, cada uma com uma placa dourada: Recursos Humanos, Administração Geral, Conselho Jurídico, Planejamento Estratégico. Ao fundo, uma recepção única com sofás brancos, obras modernas e duas estantes de mármore. Ali era o coração da empresa. E acima de tudo, o rumor que corria pelos corredores: ali era o andar do CEO. Cíntia caminhava segura, eu a seguia tentando não tropeçar nas próprias pernas. No meio do saguão, três mulheres levantaram os olhos dos computadores. Secretárias. Eu reconheceria a categoria em qualquer parte do mundo. As unhas longas digitavam com raiva contida, o salto alto batia com arrogância no piso de mármore. A primeira ergueu o olhar e me mediu de cima a baixo. O sorriso que deu foi daqueles que não chegam nos olhos. — Essa é a nova barista? — perguntou em francês, o veneno escorrendo suave. A segunda riu baixo, cruzando as pernas de forma teatral. — Tadinha… não vai durar dois dias. O CEO adorava a dona Adelaide. Cinquenta e três anos, mãos de ouro, sabia o gosto dele até no café. Essa daí… — inclinou o queixo em minha direção — …tem cara de que nunca passou do expresso da padaria. A terceira nem precisou abrir a boca. O olhar que lançou já dizia tudo: Você não pertence a este lugar. Meu estômago revirou, mas eu respirei fundo. Se aprendi algo na França, foi: orgulho não paga boleto. Cíntia, percebendo, interveio com firmeza: — Essa é Norman. Minha amiga. Está aqui para ajudar e merece respeito. As três se entreolharam e riram de novo. Mas dessa vez mais baixo. Apertei minha pasta contra o corpo, respirei fundo e me curvei ligeiramente. — Prazer. Espero aprender com vocês. Uma delas respondeu com o olhar: “não vai aprender nada aqui”. Segui Cíntia até a pequena copa, escondida no canto. Não era a cozinha principal da empresa — ali só se preparava o essencial: café, chá, bandejas de água e alguns petiscos. Era dali que eu ia sair e entrar dezenas de vezes por dia, servindo quem mandava no alto escalão da Cassani’s. Enquanto ela me mostrava os utensílios, eu pensava: Não vim até aqui para servir café. Vim para encontrar uma brecha. Só preciso de uma oportunidade. Uma janela. E quando ela aparecer, eu vou agarrar com as duas mãos. Quando saí da copa, bandeja em mãos, percebi o silêncio que caiu no corredor. As três secretárias — agora eu sabia os nomes: Mireille, a de cabelos loiros sempre arrumados em coque; Sophie, a morena de olhar afiado; e Claire, a mais jovem, de sorriso venenoso — me observavam como águias esperando a presa tropeçar. Mireille falou primeiro, cruzando os braços: — Quer um conselho, novata? Aqui ninguém dura muito tempo se não souber o valor das coisas. E não estou falando de café. Sophie completou: — O CEO pode até fingir que não repara… mas ele repara. Ele sempre reparou. Claire riu. — Isso se ele voltar a aparecer, né? — murmurou, como se fosse só para elas, mas alto o bastante para eu ouvir. Fingi que não escutei, mas cada palavra ficou marcada em mim como faca. Olhei para a bandeja, respirei fundo e caminhei firme pelo corredor. Um, dois, três passos seguros. A xícara não tremeu. Eles podem me olhar de cima a baixo, podem esperar meu erro, mas eu não vou dar esse gosto. Entrei numa das salas para servir água e café. Enquanto as pessoas importantes assinavam documentos e falavam de milhões como se fossem centavos, meus olhos caíram numa pasta esquecida sobre a mesa de apoio. Apenas por um segundo, vi a planilha aberta: números não batiam, colunas desalinhadas, movimentações que me saltaram aos olhos como sinais vermelhos. Desviei rápido antes que alguém notasse meu interesse. Mas por dentro, meu coração acelerou. Ali estava a primeira pista. Algo estava errado. Muito errado. Voltei à copa, lavei as xícaras e respirei fundo. Mireille, Sophie e Claire cochichavam na recepção, rindo baixo. Uma parte de mim queria responder, mostrar quem eu era, esfregar meu diploma na cara delas. Mas a outra parte — a parte mais forte — dizia: Ainda não. Espera. Observa. O jogo é mais longo do que elas imaginam. Naquele andar, os olhares eram armas. E eu acabara de entrar no campo de batalha. Mas se havia algo que aprendi desde os tempos de kitnet dividida com cinco estudantes e noites de humilhação como bolsista, era: ninguém me derruba quando eu já aprendi a viver no chão. Eu ia subir. E quando chegasse ao topo, aquelas risadas seriam a primeira lembrança que eu enterraria sob meus pés. No meio da tarde, quando voltei à copa, um homem surgiu à porta. — Você deve ser a nova, não é? — disse, com um sorriso elegante. — André Martins, setor administrativo. Ele me estendeu a mão. Alto, moreno claro, olhos castanhos intensos. Um homem lindo. Meu coração tropeçou. — Norman. — apertei a mão dele, tentando parecer natural. — Que tipos de café você sabe preparar? — perguntou, inclinando-se na bancada. Sem pensar, comecei a listar: expresso, cappuccino, macchiato, café au lait… Falava rápido, como se fôssemos velhos conhecidos. Já estava preparando um café vienense — creme fresco batido sobre expresso — quando me virei e o encontrei sorrindo. — Eu só brincava, para descontrair. — ele riu, pegando a xícara. — Mas que bom saber que não vou viver só de café preto comum. — Espero que goste. — respondi sem jeito. Ele provou, os olhos brilhando. — Está perfeito. Bem-vinda ao Cassani’s, Norman. E saiu, deixando atrás de si um perfume caro e uma sensação estranha no meu peito. Mas enquanto eu voltava à copa tentando me convencer de que era apenas mais um número errado numa planilha esquecida, um arrepio percorreu minha nuca. Tive a sensação de que alguém, de algum lugar, já tinha notado o quanto eu observei. E se naquela sala havia um erro… talvez o erro fosse justamente eu.