A SALA FECHADA

Onde o luto pesa menos que a ambição

Norman Andrade Paixão

A correria começou antes mesmo do elevador parar no último andar.

O som dos saltos das secretárias contra o mármore, as vozes apressadas, a pressa com os tablets, cadernos e pastas. O rumor corria: haveria uma reunião extraordinária. E não era qualquer reunião. Era a primeira desde que o “senhor” havia partido.

Eu não entendia todos os detalhes — e ninguém explicava nada para uma barista. Mas sabia ler o ambiente. Cada rosto sério, cada troca de olhares nervosa, cada “precisamos definir isso hoje” dito num sussurro que escapava pelos corredores me dizia que algo grande ia acontecer.

Cíntia surgiu da sala de André Martins, já com um bloco de anotações e uma caneta, e me puxou pelo braço.

— Vem, Norman.

— Eu? — olhei assustada. — Mas essa reunião não é… restrita?

Ela me arrastou sem dar tempo para desculpas.

— Restrita sim. Restrita a quem precisa. E você vai precisar servir café.

Respirei fundo. Eu, no meio deles.

A grande porta de vidro fosco da sala de reuniões estava aberta. Entrei atrás dela e senti os olhares me atravessarem. As secretárias já estavam posicionadas ao lado de cada chefe: Beatriz ao lado de Clara, Melissa junto de Henrique, Juliana com Sofia. Todas com pranchetas, postura ereta e olhares calculados.

E então, inevitável: uma voz baixa, mas carregada de veneno.

— O que essa mulher está fazendo aqui? — cochichou Melissa, com aquele sorrisinho que não chegava nos olhos.

Antes que eu pudesse responder, Cíntia ergueu o queixo, firme:

— Justamente por isso. Para servir café. Você não vai se levantar no meio da reunião para buscar água, vai?

Algumas risadinhas abafadas. Uma delas, Juliana, riu mais alto, debochada:

— Realmente. Eu não preciso me levantar para pegar um copo de água. Ainda bem que temos uma barista para isso.

O sangue subiu ao meu rosto. Respirei fundo e segurei firme a bandeja. Não ia dar o gosto de me ver tremer.

Me posicionei discretamente num canto da sala, de onde podia observar sem atrapalhar.

A mesa oval era imensa, vidro fumê com bordas em aço escovado. Doze cadeiras ocupadas pelos diretores. O clima era tenso, mas frio. Ninguém parecia de fato de luto. Todos pareciam… impacientes.

Clara, do RH, abriu a pasta com uma batida seca.

— Precisamos de uma decisão. A sala da presidência não pode continuar fechada. Os funcionários estão perguntando. Os clientes estão ligando. A imprensa continua especulando.

Henrique, o jurídico, cruzou as mãos sobre a mesa, a voz calma como gelo:

— A morte já é um fato consumado. A empresa precisa andar. Até quando vamos sustentar o teatro do silêncio?

Senti um arrepio. Teatro. Era essa a palavra que definiu o clima que eu via desde que pus os pés naquele andar.

Sofia, do Planejamento, ajeitou os óculos e disparou:

— Os acionistas exigem definição. O mercado não espera. Ou nomeamos um interino, ou o conselho vai indicar alguém de fora.

As vozes se sobrepunham, carregadas de frieza. Nenhuma palavra de respeito. Nenhuma lembrança. Apenas pressa. Pressa para ocupar a cadeira vazia.

Foi então que Isabella, a secretária executiva do CEO, pigarreou.

Todos se calaram.

Ela ajeitou o cabelo impecável, a voz doce, mas com firmeza:

— Eu falei com o senhor Amaro Cassani.

Silêncio. O nome pesou no ar.

Amaro. O patriarca. O fundador.

— Ele disse que já está providenciando uma pessoa para assumir. — Isabella continuou, sem piscar. — Pediu que aguardássemos instruções.

Um burburinho imediato. Clara bateu a pasta na mesa.

— Providenciando? Até quando?

Henrique balançou a cabeça, impaciente.

— A empresa precisa de liderança agora. Essa história de “aguardar” é perigosa.

Sofia foi além:

— Cada dia de indecisão representa perda de contratos. Eu me recuso a ver anos de projeções desmoronarem porque a sala da presidência está fechada.

O ar ficou denso. Eu, num canto, observava tudo. Cada frase era um choque entre interesses e arrogância.

Isabella manteve o sorriso, venenoso:

— Imagino a ansiedade de vocês. Mas a decisão é do senhor Amaro. E todos aqui sabemos que, quando ele decide, ninguém contesta.

As secretárias anotavam em silêncio, mas eu percebia seus olhares trocados. Como se até elas soubessem que havia mais naquela história.

Peguei a bandeja e servi café discretamente. As mãos firmes, o coração disparado. Beatriz pegou a xícara e nem agradeceu. Melissa, ao contrário, me olhou com sarcasmo:

— Pelo menos o café está bom.

Ignorei.

Continuei observando. André, no setor administrativo, não dizia nada. Apenas olhava para Isabella de um jeito que eu não conseguia decifrar.

E foi ali que percebi: eu estava diante de um jogo que ia muito além do que uma barista deveria ver. Havia intriga, disputa, manipulação. E eu… eu era invisível o bastante para testemunhar sem ser notada.

Pela primeira vez, entendi o poder de estar no lugar errado.

A reunião se estendeu em frases duras e olhares que diziam mais que palavras. Até que, num instante, Isabella se levantou.

— Senhores, com licença. Tenho ligações a fazer. — ela recolheu a pasta com elegância e saiu, deixando atrás de si um perfume caro e um silêncio desconfortável.

Assim que a porta fechou, o burburinho voltou.

— Arrogante. — resmungou Clara.

— Ambiciosa. — disse Sofia.

— Perigosa. — completou Henrique, a voz gelada.

Anotei mentalmente. Cada palavra era uma pista.

Fiquei em silêncio até o fim, servindo, recolhendo xícaras. Mas dentro de mim, o pensamento fervia. Quem era Isabella para falar em nome do fundador? Quem estava realmente no controle? E por que todos pareciam mais preocupados com a sala da presidência do que com a morte em si?

Saí da sala atrás de Cíntia. As secretárias riam baixo, como se eu fosse motivo de piada. Mas eu só pensava em uma coisa:

O que realmente aconteceu dentro daquela empresa?

E por que todos pareciam mais assustados com um fantasma do que com a verdade?

Quando voltei à copa para guardar a bandeja, o corredor parecia vazio. Mas, por um instante, tive a sensação de que alguém me observava. Olhos que não eram de diretores, nem de secretárias. Olhos que viam mais do que deveriam. Arrepiei. Respirei fundo. E pensei: se a sala da presidência continua fechada… talvez não seja apenas por luto. Talvez seja para esconder quem ainda está por vir.

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