Quando um “bico” vira destino
Norman Andrade Paixão Meu nome é Norman Andrade Paixão, tenho 26 anos, sou brasileira, formada em Ciências Contábeis e Auditoria. Me formei com louvor na melhor faculdade de finanças da França, com medalha e discurso. Não foi sorte: foi prova, queda, rasgo e insistência. O destino me deu uma chance única e eu agarrei não com as mãos, mas com os braços. Fiz um teste para bolsa integral; fiquei em segundo lugar entre centenas. Saí de São Paulo com duas malas, vim parar num cubículo de oito metros quadrados, uma kitnet dividida com mais cinco pessoas. Humilhação teve: o rótulo de “bolsista” colado como etiqueta barata, a piada na porta de aula, o olhar que espera agradecimento por eu existir. Não agradeci. Estudei. Entreguei. Diploma não virou acesso. Ainda não entrei numa grande empresa. Trabalhei em escritórios minúsculos: fazia planilha, e-mail, café, ligava impressora e às vezes carregava caixa. Eu dava o meu melhor mesmo quando pediam o mínimo. Mesmo assim eu sigo. Saí do trabalho e estou num café na Rue de Rivoli, esperando uma amiga da faculdade que não vejo há dois anos. Cíntia. Ela é secretária de um executivo no setor administrativo de um grupo gigante de segurança internacional. Eu daria tudo para trabalhar lá, na minha área. Sonhar não custa; custa é desistir. O café cheira a manteiga e pressa. O vidro reflete meu rosto; repasso mentalmente roteiros de entrevistas que treinei por anos. O coração corre, os pés fincam. — Oi, Norman! Quanto tempo, amiga. Cíntia chega impecável, tailleur grafite e urgência nos olhos. Abraçamos. — Verdade, dois anos! — digo. — Estranhei seu convite do nada. Ela senta e vai direto ao ponto. — Consegui um bico pra você. — os olhos brilham. — Se mostrar seu talento, é a chance de entrar no Group Mult Internacional Cassani’s Corporation Security. — Sério? Me conta. — O CEO faleceu semana passada — ela pisa em gelo — e a senhora que trabalhou anos com ele se demitiu. O andar está um caos. Precisam de gente pra segurar reunião, organizar sala, servir café, correr atrás de documento. É bico, mas é lá dentro. Engulo em seco. Vejo um crachá com meu nome. — Servir café, Cíntia? — Tudo que você precisa é entrar. — ela toca minha mão. — Faz amizade com as pessoas certas, mostra o que sabe. Eu acredito que em breve você estará na sua área. Você não é “mais uma”. — E aí? Topa? Olho a rua, penso na minha mãe que me ensinou a sublinhar poesia e no meu pai que me ensinou a conferir duas vezes cada número. Penso na minha irmã, plantão na UTI, e no meu irmão, que investe como quem j**a xadrez. Penso em quem eu quero ser quando esse capítulo acabar. — O não eu já tenho. — falo mais para mim. — Então eu topo. Cíntia solta um suspiro de dez quilos. — Perfeito. Me encontra amanhã às 7h30. Meu chefe chega às 8. Te apresento, te colocam no quadro temporário, e depois é com você. — Combinado. — e por dentro abro planilhas invisíveis: roupa, transporte, currículo, caneta que não falha. Pedimos dois cafés e um croissant. Rimos de prova oral, professores carrascos e noites de pizza barata. Quando a risada passa, ela baixa o tom. — Norman, o clima lá está… estranho. Muita gente tensa, politicagem. Entra fina, observa, não compra briga. Entrega. Qualquer coisa, me chama. — Eu sei andar em campo minado. — respondo, firme. — Obrigada por confiar. — Não é confiança, é certeza. Ah: leva um blazer. E tênis escondido na bolsa. O salto morre na quarta hora. Nos despedimos sob ameaça de chuva. No metrô, o fone enrola no dedo e eu repasso o que aprendi a engolir: “você fala francês muito bem… para brasileira”, “a vaga já foi preenchida… posso ligar um dia?”, “tem experiência grande? não? ah…”. Eu não volto menor por causa disso. Volto afiada. Em casa, a kitnet que foi trincheira é refúgio. Abro o armário e separo a roupa: calça preta impecável, camisa branca que não amassa, blazer cinza. Cabelo preso, brinco discreto, relógio simples. Na mesa, currículo atualizado, uma pasta com certificados e outra com um case que montei: análise de um demonstrativo público, com riscos e propostas de auditoria. Se ninguém pedir, tudo bem; se pedirem, eu mostro; se não pedirem, talvez eu provoque. Antes de dormir, ligo para minha mãe no Brasil. Na terceira tentativa, atende. — Filha? — Mãe, talvez eu tenha conseguido uma porta. Pequena, mas porta. Amanhã começo um bico numa empresa grande. — Porta pequena também dá na sala certa. — ela ri. — Vai com Deus. E leva casaquinho, Paris engana. Desligo com o peito quente. Abro o notebook e reviso o que sei sobre a Cassani’s: multinacional de software e soluções de segurança, contratos com governos e bancos, conselho duríssimo, acionistas que não perdoam tropeço. É ali que eu quero estar. Não pelo brilho, mas porque o que eu sei serve ali. Deito, mas o sono corre. Imagino corredores, crachás, salas de vidro, gente que fala baixo quando está nervosa. Imagino quem vou conhecer, onde estão números escondidos, quais relatórios ninguém lê porque dão trabalho. O despertador toca, parecem três minutos. Banho, coque, batom nude, pasta na mão. Eu me encaro no espelho. — Você nasceu pra isso. — digo. Lá fora, Paris está cinza. Chego ao prédio espelhado quinze minutos antes. O nome Cassani’s brilha como se não precisasse de luz. Fico ao lado da recepção, onde ninguém atrapalha e ninguém repara. Deixo a mão suar. Medo não atrapalha competência; às vezes protege. Cíntia surge pontual, passo ligeiro. — Pronta? — Pronta. Ela me entrega um crachá temporário. O plástico frio encosta na pele e chove por dentro. O coração dispara, mas meus passos seguem firmes, sem vacilar. A porta automática abre. Eu atravesso. E juro que ouço, baixinho, uma página virar. Mas no instante em que a porta automática fechou atrás de mim, tive a estranha sensação de que não era eu quem estava observando o prédio — era o prédio que me observava. E que alguém, em algum lugar lá dentro, já sabia meu nome. Será?