Mundo de ficçãoIniciar sessãoO que aconteceu, Aurora? Eu saí por um minuto! – perguntou Henrique, visivelmente alterado, tentando entender a confusão. – Por acaso você estava pensando em partir pra agressão com aquele cara?
– Não fala besteira! – retruquei, antes que ele despejasse mais julgamentos sobre mim. Expliquei o que havia acontecido, o comentário grosseiro, o riso debochado dos homens, e o jeito como eles zombaram da Carminha. Henrique ouviu tudo com atenção, respirando fundo. No fim, admitiu que eu tinha razão, que foi mesmo um desrespeito, mas ainda assim tentou justificar:
– Então você é minha namoradinha agora? – ele completou, com um meio sorriso provocador. – Porque o sujeito disse que eu devia domar a minha namorada.
Soltei um suspiro impaciente, revirei os olhos e dei de ombros, tentando fingir que não me afetava. Mas me afetava — e muito. A raiva ainda fervia sob minha pele. O jantar havia perdido o gosto, e até o ar parecia mais pesado. Voltamos pra casa em silêncio, o som do motor e o ranger dos dentes de Henrique preenchendo o espaço.
Quando ele parou o carro em frente à minha casa, hesitou um instante antes de desligar o motor. Voltou o rosto pra mim, como quem procurava um jeito de consertar o que nem estava quebrado, só… fora do lugar.
– Foi uma ótima noite, apesar do infortúnio – disse ele por fim, tentando quebrar o clima. – Devíamos repetir. Claro, tirando a parte em que você, com 1,65 de altura, quis enfrentar um homem de quase 1,90.
Ele riu. E, mesmo sem querer, acabei rindo também. Aquela risada dele tinha o dom de desmontar minhas defesas. Respirei fundo, tentando me recompor.
– Olha, eu não ia partir pra cima dele. Só me exaltei.
– Foi exatamente o que você fez – respondeu, arqueando uma sobrancelha.
– Eu não suporto ver injustiça, ainda mais com quem eu gosto. A Carminha sempre foi desastrada, coitada, e ainda riem dela quando tropeça? – falei, a voz ganhando firmeza enquanto revivia a cena. Senti os punhos se fechando, o coração acelerar. – Não aguento ver gente sendo humilhada.
Henrique apenas me observava. Depois, num gesto simples, estendeu as mãos e segurou as minhas.
As dele estavam quentes — firmes, mas gentis. Era como se o toque dissesse o que ele não ousava falar: calma, não precisa carregar o mundo nas costas.
– Ei… já passou. Eles nem são daqui. Logo somem. – disse, acariciando o dorso da minha mão com o polegar.
Olhei pra ele. Depois, para nossas mãos unidas. Um arrepio me percorreu inteira. Era diferente daquela raiva que me movia — era outra coisa, mais suave, mas igualmente perigosa.
O silêncio se instalou. A respiração dele misturava-se à minha, e por um momento parecia que o tempo hesitava. Tentei entender o que aquele olhar significava. Tentei... mas desisti.
– Aurora... – começou ele, num tom baixo, quase sussurrado.
– Boa noite, Henrique. Obrigada pelo jantar. – cortei rápido, abrindo o cinto e empurrando a porta do carro. – Aparece por aqui outra hora.
Ele suspirou, soltou minha mão devagar, e com um meio sorriso resignado, respondeu:
Desci do carro sem olhar pra trás. Mas eu sabia. Sabia que ele ainda me observava entrar em casa — como quem tenta decifrar algo que escapa.
Acendi a luz do quarto e quase levei um susto ao ver minha mãe sentada na beira da cama, com aquele sorriso curioso de sempre.
– Como foi a noite? – perguntou, empolgada, como se esperasse por um relatório detalhado.
– Mãe! Que susto! Não faz isso! – levei a mão ao peito, tentando desacelerar o coração. – Foi... foi boa – respondi, sem muita convicção.
– Henrique é um bom rapaz. E está ainda mais bonito agora, não acha? – disse com um ar sonhador.
– Mãe! – protestei, revirando os olhos. – Pare com isso, somos só amigos.
Ela arqueou uma sobrancelha, cética.
– Mãe, por favor. – interrompi, cansada. – Eu não quero me casar, nem me envolver com ninguém. Já disse isso, e é sério.
A expressão dela mudou. Um misto de pena e firmeza tomou conta do rosto.
Fiquei sem reação. O tom dela... havia algo ali. Algo que me incomodou, como se soubesse mais do que estava disposta a revelar.
Ela se levantou e saiu do quarto, deixando apenas o perfume leve e o peso das palavras pairando no ar.
“Precisa superar o passado.”
A frase ecoou na minha mente como uma batida constante. Fechei os olhos, mas a lembrança veio mesmo assim — nítida, cruel, insistente. Aquele passado que eu jurava ter enterrado voltava sempre que o silêncio tomava conta.
Não queria reviver nada daquilo. Não queria lembrar dele.
Engoli o nó na garganta e caminhei até a janela, buscando o vento da madrugada. O rancho estava calmo apenas o som de grilos cantando distante em intervalos lentos. Me agarrei a isso, a essa calma passageira, como quem se recusa a afundar.
Tentei pensar em outra coisa. E, para meu azar, consegui.
A imagem daquele idiota do restaurante voltou à mente. O jeito como ele me olhou, o sorriso debochado, a sensação incômoda de familiaridade.
Aquele rosto… onde eu já tinha visto?
Revirei lembranças antigas, rostos apagados, festas, eventos… nada. Mas havia algo ali, uma fagulha incômoda de reconhecimento que me fez estremecer.
Fechei a cortina e me deitei, mas o sono não veio.
O relógio marcava quase duas da manhã quando finalmente parei de brigar com o travesseiro. O quarto estava escuro, silencioso, mas minha cabeça fervilhava.
O rosto dele.
Talvez fosse isso que ela queria dizer com superar o passado. Talvez eu estivesse apenas presa em um ciclo — o mesmo medo, a mesma resistência, as mesmas feridas reabertas cada vez que alguém se aproximava demais.
Mas e se aquele homem não fosse apenas uma lembrança maldita? E se ele realmente fosse alguém que eu já conhecia — alguém de antes?
Um arrepio me percorreu a espinha.
Puxei o cobertor até o queixo e fechei os olhos com força, como se isso bastasse pra afastar os fantasmas.
Mas o rosto dele insistia em aparecer, pairando entre o real e o sonho.
Demorei a dormir, tomada por uma sensação estranha — como se algo estivesse prestes a acontecer.
Algo que eu não sabia se queria... ou temia.







