A primeira tarefa de Leonardo chegou na forma de um endereço rabiscado num pedaço de papel amassado, entregue por Tulio na manhã seguinte, sem uma palavra além de um "Resolva." O ar no sedan preto, enquanto se moviam pelas ruas cinzentas da cidade, era pesado com o não dito. Tulio, a sombra implacável de Don Costello, dirigia com uma precisão fria, seus olhos como os de um falcão perscrutando cada movimento de Leonardo, cada microexpressão. Era um teste, Leonardo sabia. Uma forma de medir sua obediência, sua eficiência, e talvez, sua crueldade.
O endereço levava a uma pequena floricultura num bairro modesto, o tipo de estabelecimento familiar que lutava para sobreviver em meio ao avanço predatório dos grandes conglomerados. "Signor Antonelli," Tulio finalmente quebrou o silêncio, a voz rouca como cascalho. "Um comerciante local. Pequenas dívidas, grande teimosia. O Don aprecia a pontualidade nos… acordos."
Leonardo apenas assentiu, observando a fachada colorida, mas ligeiramente decadente, da loja. Uma "simples coleta". No mundo dos Costello, ele intuía, nada era verdadeiramente simples. Cada gesto era uma mensagem, cada ação uma peça no complexo tabuleiro do poder. Ele sentia o peso daquele primeiro passo, a forma como ele definiria sua imagem perante a famiglia. Força bruta? Ou algo mais?
Enquanto Leonardo se preparava para seu primeiro mergulho oficial nas águas turvas dos Costello, Sabrina Rossi estava no olho de um furacão muito diferente, mas não menos perigoso. O protesto em frente à sede imponente da Progresso Empreendimentos S.A. ganhava corpo. Cerca de cinquenta pessoas da Vila Esperança, armadas com cartazes feitos à mão e a força de seu desespero, gritavam palavras de ordem, suas vozes uma mistura de esperança e indignação.
"O Novo Amanhã não vai morrer!" "Nossas casas, nossas vidas!" "Progresso sim, destruição não!"
Sabrina estava na linha de frente, megafone em punho, o rosto corado pela emoção e pelo sol da manhã. Ela discursava com uma paixão que contagiava, seus argumentos articulados e diretos, denunciando a ganância da incorporadora, a conivência velada de alguns setores da prefeitura, a injustiça do despejo iminente. Dona Lurdes, ao seu lado, segurava uma faixa com as mãos trêmulas, mas os olhos brilhando de orgulho pela jovem que se tornara a voz de sua comunidade.
A resposta da Progresso Empreendimentos não tardou. Primeiro, seguranças particulares, homens corpulentos de terno escuro e olhares hostis, formaram um cordão de isolamento na entrada do edifício espelhado, tentando intimidar os manifestantes. Depois, um homem engravatado, de sorriso cínico e cabelos engomados, que se apresentou como "Dr. Bastos, Diretor de Relações Institucionais", desceu para "dialogar".
"Prezada signorina Rossi," ele começou, a voz untuosa, ignorando os outros manifestantes, "apreciamos sua… paixão juvenil… pela 'justiça social'. Mas a Progresso Empreendimentos opera dentro da mais estrita legalidade. O terreno nos pertence, e temos planos ambiciosos e modernos para aquela área, que trarão progresso e desenvolvimento para toda a cidade."
"Progresso para quem, Dr. Bastos?" Sabrina retrucou, o megafone amplificando sua voz firme. "Para os seus investidores anônimos? Para os futuros moradores de seus arranha-céus de luxo? E as famílias da Vila Esperança? Os idosos que perderão seu único ponto de encontro? As crianças que ficarão sem suas aulas de reforço? Isso é progresso ou apenas ganância disfarçada de modernidade?"
A troca de farpas foi tensa. Dr. Bastos, com sua polidez venenosa, tentava desqualificar Sabrina, chamando-a de "menina rica e mimada brincando de ativista". Os seguranças da incorporadora começaram a se mover de forma mais agressiva, empurrando alguns manifestantes, tentando confiscar os cartazes. Um pequeno tumulto se formou. Sabrina, tentando acalmar os ânimos, viu-se cercada, o sorriso cínico de Bastos observando-a de longe, como um predador que sabe que sua presa está encurralada. A polícia, convenientemente, demorava a chegar, apesar das chamadas insistentes.
Na floricultura de Signor Antonelli, a atmosfera era igualmente carregada, embora de uma forma mais silenciosa e pessoal. O velho florista, ao ver Tulio entrar em sua loja seguido por Leonardo, empalideceu, as mãos manchadas de terra tremendo ao podar um vaso de rosas. "Signor Tulio! Que… que honra inesperada," ele gaguejou, os olhos buscando em vão uma rota de fuga. Tulio não respondeu. Apenas se encostou no balcão, os braços cruzados, deixando o silêncio e sua presença ameaçadora fazerem o trabalho. Leonardo deu um passo à frente. "Signor Antonelli," ele começou, a voz surpreendentemente calma, quase gentil. "Viemos em nome de Don Costello. Apenas para lembrá-lo de um pequeno… mal-entendido financeiro que precisa ser resolvido."
O velho suspirou, os ombros curvando-se sob o peso da dívida e do medo. "Eu sei, eu sei… Mas as coisas não têm sido fáceis. As vendas caíram… a doença da minha esposa… eu só preciso de um pouco mais de tempo…" Leonardo olhou ao redor da loja. As flores, apesar de modestas, eram bem cuidadas, arranjadas com um carinho que denunciava a paixão do velho pelo seu ofício. Ele viu a preocupação nos olhos de Antonelli, a dignidade ferida. Lembrou-se das histórias de sua própria família, de como a ganância e o poder podiam esmagar os pequenos, os honestos. "Don Costello é um homem de negócios, Signor Antonelli," Leonardo continuou, "mas ele também entende que… imprevistos acontecem." Ele olhou para Tulio, que o observava com uma expressão indecifrável. "Talvez possamos encontrar uma forma de renegociar os termos, de criar um plano de pagamento que seja… mais realista para sua situação atual. Desde que haja um sinal de boa-fé, é claro."
Antonelli o encarou, incrédulo. Renegociar? Com os Costello? Era inédito. Tulio permaneceu em silêncio, mas Leonardo sentiu seu olhar se intensificar. Era um risco, aquela abordagem. Desafiava o modus operandi da famiglia, que se baseava no medo e na intimidação. Mas Leonardo sentia que precisava testar os limites, precisava mostrar que havia outras formas de exercer o poder. Após uma tensa negociação, onde Leonardo propôs um pequeno pagamento imediato e um cronograma de parcelas que, embora ainda pesadas, eram factíveis para o florista, um acordo foi selado. Antonelli, com lágrimas nos olhos, agradeceu profusamente. Leonardo apenas assentiu, mantendo a fachada fria, mas por dentro, sentia o gosto amargo daquele mundo e, ao mesmo tempo, uma pequena e perigosa centelha de… satisfação? Por ter feito a coisa certa, dentro do possível?
Ao saírem da floricultura, Tulio permaneceu em silêncio por vários quarteirões. Leonardo não tentou quebrar o gelo. Sabia que estava sendo julgado. "Abordagem interessante, Leonardo," Tulio disse finalmente, parando o carro num local discreto. "Diplomacia. Não é o estilo usual da casa." "Resultados são resultados, Tulio," Leonardo respondeu, encarando-o. "O Don quer o dinheiro. E o respeito. Acredito que conseguimos ambos. E garantimos que Signor Antonelli continue sendo uma fonte de renda… e de informações… no futuro." Tulio o encarou por um longo momento. "Você é diferente do que eu esperava. O Don vai querer saber cada detalhe desta… 'negociação'." Havia um aviso implícito naquelas palavras.
Enquanto isso, o protesto de Sabrina em frente à Progresso Empreendimentos terminara com um gosto amargo. A polícia finalmente chegara, mas mais para dispersar os manifestantes do que para proteger seus direitos. Dr. Bastos dera uma declaração à imprensa (uma equipe de TV local e alguns blogueiros, incluindo Beatriz, que filmava tudo com seu celular, indignada) chamando o protesto de "baderna orquestrada por interesses escusos" e reafirmando que o projeto do arranha-céu seguiria adiante. Sabrina sentia-se frustrada, exausta, mas não derrotada. Ao ver as imagens que Beatriz postara online, o olhar de desprezo de Bastos, a forma como os seguranças trataram Dona Lurdes, uma nova chama se acendeu em seu peito. "Eles acham que podem nos intimidar, Bia," ela disse à amiga, mais tarde, no pequeno escritório do Novo Amanhã. "Acham que porque temos menos dinheiro, menos poder, vamos simplesmente desistir." "E vamos?" Beatriz perguntou, os olhos brilhando com cumplicidade. "Nunca," Sabrina respondeu, um sorriso determinado surgindo em seus lábios. "Se eles querem jogar sujo, talvez precisemos aprender algumas regras desse jogo. Quero que você investigue a Progresso Empreendimentos, Bia. Cada contrato, cada licitação, cada investidor anônimo. Quero saber quem está por trás dessa fachada de 'progresso'. Quero encontrar os podres deles."
Beatriz sorriu. "Agora você está falando a minha língua, S. Vai ser arriscado. Mas pode apostar que vou adorar revirar esse ninho de cobras."
Naquela noite, Leonardo sabia que seu primeiro teste terminara. Ele não usara a força bruta, mas a inteligência, a persuasão, a estratégia. Mostrara um lado diferente. Se isso seria visto como uma força ou uma fraqueza por Don Costello, ele não sabia. Mas sentia que, de alguma forma, traçara uma linha na areia, uma pequena demarcação de sua própria identidade naquele mundo sombrio. E, enquanto a cidade adormecia, ele se perguntava qual seria o próximo passo, qual seria o verdadeiro "grande golpe" que o Don mencionara, sem saber que, em outro canto da cidade, uma jovem idealista também traçava seus próprios planos de batalha, pronta para enfrentar gigantes em nome da justiça. Duas tempestades se formando, em rotas ainda separadas, mas convergindo para um futuro incerto e perigoso.