Estou escondida atrás do banco da Kombi, com os olhos arregalados, enquanto vejo o sangue escorrer do corpo do homem que veio atrás de mim quando começou o tiroteio. Achei que tinha sido baleada, até perceber que ele havia se colocado na minha frente — a bala o atingiu bem na cabeça.
— Ayla! — começo a gritar pela minha amiga, da qual me perdi quando começamos a correr. — Ayla! — Sem resposta.
Não me atrevo a sair daqui. Ainda ouço os barulhos dos tiros. Não sei o que me passou pela cabeça quando concordei com a Anne em vir comemorar a virada do ano — e meu aniversário — em um baile de favela. Se meu pai descobrir que estou aqui, ele me mata. Mas, se eu continuar escondida, vou morrer do mesmo jeito. É só uma questão de tempo até me acharem dentro dessa lata velha.
— Ayla! — grito mais uma vez, mas só os tiros me respondem.
Percebo que os disparos estão se afastando, então me atrevo a me mover. Passo por cima do corpo do rapaz — ele parece ter uns 30 anos — e sinto algo escorrer pelo meu rosto. Só agora percebo que estou chorando. Só percebi ao me acalmar o suficiente para me mexer.
Chego ao banco da frente e olho ao redor, procurando alguém para pedir ajuda, mas não vejo ninguém. Sei que a Anne mora por aqui, mas não faço ideia de onde fica a casa dela.
Saio da Kombi e caminho até uma viela à frente. Vejo uma casa com a luz acesa. Quando vou bater na porta, sinto alguém me puxar pelo braço. Olho para trás e vejo um homem lindo me encarando.
— Por favor, me ajuda! Estou perdida, preciso sair daqui! — Ele me encara com seus olhos azuis, mas não diz nada.
Ele se vira e me puxa de volta em direção à Kombi.
— O que você está fazendo? Me solta! — digo, mas sou ignorada.
— Me larga! — insisto, mas ele continua me puxando.
Ouço um tiro atrás de nós. Ele me puxa com mais força, jogando-me dentro da Kombi e entrando logo atrás.
— Fica abaixada — ordena. Eu não me mexo. — Fica abaixada, porra!
Obedeço. Começo a chorar. Não sei quem ele é, mas vejo que está armado. Fico com medo. Mas, se quisesse me fazer mal, já teria feito.
Ele entra na Kombi e se depara com o corpo do homem morto. Vejo sua expressão mudar na hora. Os olhos, que antes eram da cor do céu, escurecem como o mar profundo. Ódio se forma em seu rosto. Ele me olha, mas não diz nada. Fica claro que conhecia o rapaz morto.
— Você o conhece? — pergunto, com curiosidade. Ele me encara, mas não responde. — Ele veio atrás de mim quando começou o tiroteio. Entrei aqui e ele entrou logo depois. Ouvi o tiro... pensei que tinha me atingido. Quando olhei pra trás, vi que foi bem na cabeça dele...
Ele fica vermelho. Na sua pele branca, a raiva é visível. Ele definitivamente não parece ser daqui. O observo de cima a baixo: usa um relógio e um cordão de ouro. Sua calça jeans clara da Calvin Klein está manchada de sangue.
— Você está bem? Se machucou? — pergunto.
— Cala a boca — ele responde, num tom baixo.
— Só estou preocupada... você está sujo de sangue — digo.
— Já mandei você calar a boca.
Ouço passos do lado de fora. Vejo um homem — está usando um uniforme do BOPE — e carrega uma mulher nos braços. Reconheço os cachos, o vestido branco longo. É exatamente como Ayla estava vestida. Sinto meu corpo estremecer ao ver que ela está coberta de sangue e desacordada.
— Ai, meu Deus... é a Ayla — falo, sentindo a voz falhar. — AYLAAAA — começo a gritar.
O homem que me puxou da viela me encara e tampa minha boca.
— Tá ficando maluca, porra? Para de gritar, vai chamar a atenção dele — ele sussurra, mas o tom é firme, frio. É agora que percebo: ele não é quem eu achava que era.
— Ele está ajudando ela! É uma boa pessoa! Não vai nos machucar — digo, com firmeza.
— Ele é o inimigo aqui — diz ele, com tanta certeza que me arrepia. Essa é a verdade dele, mas não é a minha.
— Quem é você? — pergunto.
— Não interessa. Agora cala a porra da boca.
Ignoro e grito de novo por Ayla.
— Vou ter que calar você na força, é isso? Ou a engomadinha não sabe seguir uma simples ordem? — diz ele, mais furioso que antes.
— SOCORRO! — grito, e vejo que chamei a atenção do homem que carrega minha amiga. Ele olha ao redor, tentando identificar de onde vem o som.
— SOCORRO! — grito mais uma vez.
Vejo o homem girar, procurando por mim. Mas, antes que ele me veja, sinto uma dor aguda na cabeça, e então, tudo escurece.