31/12/2022 - Jade

  No dia anterior, mais uma vez, eu não consegui curtir a praia com minhas amigas. Meu irmão me seguiu novamente, estragando tudo. Disse que tinha ido por causa da Anne, não por mim, mas eu não sou burra. Já estava cansada dele e do meu pai controlando cada passo meu.

No dia anterior, mais uma vez, eu não consegui curtir a praia com minhas amigas. Meu irmão vivia me seguindo e estragando tudo. Dizia que tinha ido por causa da Anne, não por mim,mas eu não era burra. Já estava cansada dele e do meu pai controlando cada passo meu.

Murilo continuava grudado na Anne enquanto eu e Ayla conversávamos. Ayla tinha 1,70m de altura, corpo de modelo e cabelos crespos que chamavam atenção por onde passava. Era uma mulher negra linda, que mexia com o coração de metade da nossa turma de Medicina. Nossos pais se conheceram quando entraram para o Bope e, desde então, éramos inseparáveis.

Depois de um bom tempo, Murilo finalmente decidiu ir embora. Ele me deu um beijo na testa e repetiu o gesto com a Ayla.

— Estamos combinados? — perguntou à Anne, que respondeu com um sorriso cúmplice. Nem perdi meu tempo tentando saber do que se tratava. Já havia aprendido a não me meter nos rolos do Murilo.

 Assim que ele se afastou, Anne se virou pra gente, empolgada.

— Gente! Tenho a melhor ideia pro réveillon. Vai rolar um baile pesadão lá na Rocinha. Vai ser aberto para geral, com DJ, luz, bebida, fogos... Tudo.

Ayla arregalou os olhos.

— Aberto para geral?

 — Uhum — Anne confirmou com um sorriso largo. — A favela inteira ia colar, e viria gente de outros morros também. Meu tio estava bancando tudo, ia ter segurança, olheiro, a porra toda. Confia!

Ayla parecia empolgada, mas eu cruzei os braços, sentindo o estômago revirar.

 — Eu não vou.

As duas me encararam.

— Como assim, Jade? — Anne perguntou, indignada.

— É baile aberto, Anne. Você mesma disse. Ia estar lotado, gente que a gente nem conhecia, sem controle de nada. Eu não estava a fim de começar meu ano me metendo no meio de confusão.

— Que exagero... — ela revirou os olhos. — Estava tudo certo com a segurança. Ia ser o evento do ano, todo mundo iria.

— Então vai você — retruquei, firme. — Eu passo. Não ia passar a virada do ano e ainda meu aniversário em um baile de favela.

Ayla tentou aliviar o clima:

— Calma... A Jade só achou que era perigoso. Mas, sei lá, quem sabe até lá ela muda de ideia?

 — Eu não ia mudar — disse, já me levantando da canga e sacudindo a areia das pernas. — Vocês sabiam como eu era. Não era questão de frescura, era só... sei lá, instinto.

Anne continuou insistindo, murmurando um monte de coisas, inclusive me chamando de frouxa, mas eu a ignorei — e foi quando uma notificação chegou no celular, interrompendo meus pensamentos. Era do meu pai:

 “Jade, você só pode estar de brincadeira. Eu viajo pra espairecer, e você foge pra uma praia sozinha? Você me decepciona. Volte pra casa agora!”

Logo depois, outra mensagem:

“Não sei se consigo voltar amanhã pro seu aniversário, mas espero te encontrar em casa quando eu voltar.”

Li e reli. Ele nunca me tratara assim. Nunca deixara de passar um aniversário comigo. Quando trabalhava no dia 1º, sempre dava um jeito. Agora me tratava como uma prisioneira.

Olhei para as meninas, esperando que eu dissesse algo.

 — Vamos ao baile.

                                                                                 ***

  Pegamos um Uber até a comunidade. Assim que nos aproximamos, avistei homens armados à frente. Desci do carro com as pernas trêmulas, tentando disfarçar o nervosismo. Esperei que minhas amigas fizessem o mesmo.

Anne seguiu na frente com a segurança de quem já conhecia o terreno. Eu e Ayla nos demos as mãos e ficamos paradas, observando enquanto ela conversava com um garoto. Ele tinha um certo charme, cheio de tatuagens — uma delas, uma aranha desenhada no pescoço. Anne olhou para trás, apontou para a gente, e o garoto me encarou. Sorriu de canto, depois desviou o olhar para Ayla e piscou. Nossa amiga voltou animada, quase saltitante.

— Os meninos vão dar carona até lá em cima — disse.

 Apertei a mão de Ayla com mais força, ainda tensa. O garoto se aproximou. Meu olhar foi direto para a cintura dele — onde carregava uma arma.

 — Meninas, esse é o Chapoca — Anne apresentou.

 Fiquei em silêncio, só o encarei. Ayla já tinha falado sobre ele, especialmente quando me contou como Anne perdera a virgindade tão nova.

— Relaxa, gatinha. Ninguém vai machucar vocês — ele disse, com a mão apoiada sobre a arma, olhando ao redor como se quisesse provar que estava no controle. — Meus irmãos ali vão levar vocês até lá em cima. Pode confiar, são pilotos. Tá ligado?

— Legal… já tô aqui mesmo — respondi, tentando parecer despreocupada, embora a pergunta “que merda eu vim fazer aqui?” continuasse martelando dentro da minha cabeça.

Chapoca nos levou até os outros meninos. Nenhum parecia ter mais de quinze anos. Ele, por outro lado, devia ter uns vinte e cinco. Vi Anne subir na garupa de um deles, e Ayla fez o mesmo logo depois.

— Não tem capacete? — perguntei, já sabendo a resposta.

 — Só sobe logo! — gritou Anne, exatamente quando o amigo arrancou com a moto.

Percorremos algumas vielas e chegamos a uma praça com uma quadra. Um palco com DJ já estava montado. Meninas dançavam provocantes no meio da multidão, algumas se esfregando em garotos, outras bebendo ou fumando. Olhei ao redor e percebi homens e adolescentes armados com fuzis em cada canto. Meu corpo se encolheu, instintivamente.

Segui até o bar, onde Chapoca dissera que poderíamos ficar mais à vontade. O som estava tão alto que mal entendi o que minhas amigas diziam. Um pouco mais adiante, perto de uma viela, vi uma Kombi velha com um rapaz vendendo gelo. A van parecia abandonada ali há anos — sem pneus, enferrujada, como parte do cenário.

 — JADE! — Ayla gritou.

 — Oi! Desculpa, não te ouvi — respondi, gritando de volta.

— Vamos dançar? — ela perguntou, estendendo a mão.

Assim que o DJ Rennan assumiu o som, começamos a dançar. Sempre que algum cara se aproximava demais, eu me escondia atrás da Anne. Mas, aos poucos, comecei a relaxar. Me vi sorrindo. Me vi leve. Esqueci meu pai. Esqueci meu irmão. Pela primeira vez em muito tempo, me senti viva. O DJ iniciou a contagem regressiva para o Ano Novo — e para o meu vigésimo primeiro aniversário.

Dei as mãos para Ayla e Anne. Quando os fogos estouraram no céu, abracei as duas. Eu estava bem. Estava em paz.

Pelo menos, era o que eu pensava.

Um estalo seco cortou o ar — seguido de outro, e mais outro. Tiros. Senti um arrepio percorrer a espinha. No início, pensei que fossem fogos. Mas as pessoas começaram a correr. O pânico tomou conta. Fiquei paralisada. Minhas pernas simplesmente travaram.

— JADE, CORRE! — Ayla me puxou com força pelo braço. — VAMOS! NÃO PODEMOS FICAR PARADAS!

 — CADÊ A ANNE? — gritei, desesperada.

 — ELA CORREU, SUMIU! MAS CONHECE AQUI, VAI FICAR BEM! VEM!

 Comecei a correr com ela, mas vi alguém derrubando Ayla bem na minha frente. Não consegui ver quem era — minha visão estava turva de medo e lágrimas. Só percebi que era uma pessoa de cabelo negro. Ayla já não estava mais no chão. E eu só consegui correr.

 Meus pés me levaram para perto da Kombi. Os tiros ecoavam tão próximos que o som me rasgava por dentro. Olhei para trás e vi um homem vindo na minha direção. Não pensei. Só corri.

 — Não adianta correr, gracinha… eu vou te pegar. Mas não quero te machucar.

Fingir que não ouvi era minha única chance. Se eu parasse, poderia morrer. Se me escondesse, talvez sobrevivesse.

Entrei na Kombi, me esgueirei até o último banco e me encolhi, tentando desaparecer.

Mais tiros. Cada vez mais próximos.

Um disparo estourou tão perto que, por reflexo, passei as mãos pelo corpo, procurando o ferimento.

Mas não me acertou.

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