Elena Vasquez D’Amato
Em breve eu deixaria de usar o sobrenome que mais amava e o que mais odiava, para usar um que eu mal conhecia.
Logo eu seria a senhora Moreau.
O nome soava distante, quase estrangeiro em meus lábios. Como se fosse parte de um destino escrito por mãos que não eram as minhas.
Quantas vezes eu já havia mudado de sobrenome, de identidade, de papel? Aos quatro anos, quando fui resgatada de um inferno que nem deveria lembrar. Aos dezessete, quando tentei aceitar os D’Amato como parte de mim, mas descobri que só representava uma peça em um jogo. Agora, novamente, um novo nome, uma nova vida — só que dessa vez, não havia inocência. Eu sabia exatamente no que estava me metendo.
O quão tranquilo seria esse casamento?
Eu e Leonhart tínhamos concordado em ser leais. Apenas isso. Mas seria suficiente? Será que eu conseguiria viver anos ao lado de um homem sem amor? Ou será que, com o tempo, a proximidade nos levaria a algo mais? Um sentimento, um risco, uma paixão inesperada?
Ou será que eu nunca abriria meu coração de novo?
Arthur havia levado uma parte de mim quando me deixou no altar. Não porque eu o amasse loucamente — mas porque ele me roubou a confiança que eu tinha em mim mesma. Ele me transformou em espetáculo, em manchete, em humilhação pública.
O amor, pensei com amargura, parecia improvável demais.
---
O carro preto que me levava pelas ruas de Florença deslizava silencioso. Eu observava a cidade pelas janelas escuras: ruas estreitas de paralelepípedo, varandas floridas, o reflexo dourado das lanternas antigas nas paredes de pedra. A beleza quase me distraiu de meus pensamentos — quase.
A tela do celular acendeu de repente. A notificação mal piscou antes de eu atender.
— Elena?! Que porra é essa?! — a voz de Diego explodiu no viva-voz, urgente, histérica.
Fechei os olhos, pressionando a testa contra o vidro gelado da janela.
— Oi, Diego.
— Não me vem com "oi". Você enlouqueceu? Doou toda a sua parte da herança? Vai se casar com um desconhecido? Voltou pra aquela gente?!
Suspirei fundo. Era sempre ele. Sempre o primeiro a me defender do mundo, mesmo quando eu insistia em me jogar nele de cabeça.
— Eu precisava fazer isso. — minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
— Precisava? Elena, não precisava de nada! Você tinha um lar comigo, tinha opções! Você não pode simplesmente... — ele parou, engasgando de raiva. — Meu Deus, você vai se enterrar em um casamento arranjado com um cara que nem conhece?!
— Eu preciso seguir em frente. — a frase saiu firme, mas minha garganta ardia. — E você sempre disse que não queria essa herança. Só estou formalizando o que já sabíamos.
— Formalizando?! — ele riu, mas sem humor. — Elena, você acabou de ser abandonada no altar e está correndo para se casar de novo? Isso é punição ou fuga?
A pergunta me atravessou como faca.
Talvez fosse as duas coisas.
A verdade é que eu não sabia. Só sabia que ficar em Nova York era impossível. Ser a mulher rejeitada no altar, viralizada nos stories de centenas de convidados, eternamente lembrada como a noiva do “não”. Eu não suportava.
E mais do que isso: eu não suportava mais viver entre as cinzas do que restou de mim com Arthur.
Silêncio. Do outro lado da linha, ouvi a respiração pesada de Diego.
— Só me promete uma coisa. — disse por fim, num tom mais calmo, quase cansado. — Que vai cuidar de você. E que, se isso der errado, me liga. Não importa a hora. Nem o lugar.
Meu peito se apertou.
— Eu prometo.
Ele suspirou longo, derrotado. Eu sabia que Diego odiava me ver assim, me entregando a uma vida que não era escolha, mas estratégia. Mas também sabia que ele não podia me impedir.
A ligação caiu, deixando um vazio doloroso.
---
O carro reduziu a velocidade diante de um portão imponente. As grades de ferro se abriram em silêncio, revelando a mansão dos Moreau.
Se Florença era um quadro renascentista, aquela casa era sua moldura mais perfeita — e mais fria. Fachada de pedras claras, janelas altas com molduras escuras, um jardim milimetricamente cuidado. Cada detalhe gritava sofisticação. Mas, por trás do esplendor, eu sentia a impessoalidade. Como se aquela beleza não fosse feita para acolher, e sim para impressionar.
Quando desci, o salto afundou levemente no cascalho da entrada. O som seco ecoou mais alto do que eu gostaria.
Uma mulher me aguardava. Postura impecável, olhar calculado, roupa simples mas impecável.
— Senhorita D’Amato. — disse com um leve aceno de cabeça. — Sou Céline. Governanta da casa. O senhor Moreau está à sua espera.
Assenti. Céline parecia o tipo de pessoa que controlava tudo nos bastidores: desde o funcionamento da mansão até a reputação da família.
Respirei fundo e segui para dentro.
O saguão da mansão era imenso. Mármore branco sob meus pés, lustres que pareciam arrancados de um palácio, tapeçarias antigas. E ali, no centro, me aguardava ele.
Leonhart Moreau.
Alto, impecável, frio como o chão em que estávamos. Seus olhos cinzentos me examinaram com calma, como se cada detalhe meu fosse uma peça de xadrez que ele precisava entender.
— Seja bem-vinda, Elena. — disse, com um sorriso leve. Não havia calor, mas tampouco desprezo.
— Obrigada, senhor Moreau.
— Leonhart. — corrigiu com um pequeno movimento de cabeça. — A menos que prefira manter as formalidades.
— Não. Leonhart está ótimo. — respondi, sustentando seu olhar.
O silêncio que se seguiu foi quase palpável. Ele era bonito, sim — mas não de uma beleza fácil. Era perigoso. Intenso. O tipo de presença que ocupava todos os espaços.
Eu me sentia como alguém prestes a assinar um contrato cujas cláusulas em letras pequenas jamais seriam reveladas.
— Vai querer descansar antes de discutirmos os termos da convivência? — ele perguntou, a voz baixa mas firme.
— Não. — respondi sem hesitar. — Prefiro resolver tudo agora. Assim já sei com o que estou lidando.
Um dos cantos da boca dele se ergueu. Aprovação? Diversão? Não soube dizer.
---
Caminhamos juntos até a biblioteca.
O ambiente era forrado de estantes de madeira escura, repletas de livros encadernados em couro. O cheiro de papel antigo misturado a vinho tinto pairava no ar. Uma lareira apagada dominava a parede central, e sobre a mesa nos aguardavam duas taças já servidas.
Leonhart serviu-se primeiro, e então começou:
— Primeira regra: respeito. — sua voz era firme, mas sem dureza. — Não nos casamos por amor, mas não aceitarei desrespeito ou escândalos. Você será uma Moreau em todos os sentidos — inclusive diante da mídia.
Assenti, levando a taça aos lábios. O vinho desceu pesado.
— Está bem. Segunda?
— Liberdade. — ele me encarou, os olhos cinzentos fixos nos meus. — Não espero que finja algo que não sente. Mas quero honestidade. Se quiser partir, será livre para fazê-lo — desde que me avise com antecedência.
Arqueei uma sobrancelha. Isso, eu não esperava.
— Entendido.
Ele se aproximou alguns passos. Sua presença parecia maior, quase esmagadora.
— Terceira e última regra. — sua voz ficou mais lenta, mais grave. — Lealdade. Se você aceitar este casamento, terá minha proteção, meu nome e minha aliança. Mas exijo fidelidade — não no sentido romântico, mas político. Você será minha esposa. E eu, seu aliado.
Aquilo não era um conto de fadas. Era um pacto. Um acordo entre duas almas que carregavam cicatrizes demais para amar, mas orgulho demais para se curvar.
Eu ergui a taça e disse, firme:
— Eu aceito. — toquei meu vinho no dele. — Desde que você prometa não me tratar como uma peça de xadrez. Eu já fui usada demais na vida.
Leonhart inclinou-se levemente, os olhos ainda fixos nos meus.
— Nunca subestimo uma rainha, Elena.
O vinho queimou minha garganta.
Era oficial.
Eu estava prestes a me tornar alguém que nunca planejei ser: esposa de um estranho, filha de uma aristocracia que me rejeitou, protagonista de uma história que não escrevi.
Mas, pela primeira vez, talvez eu pudesse reescrevê-la.
{…}