Elena Vasquez D’Amato
Acordei naquele enorme quarto que não tinha nada meu. Apenas estava ali, deitada, como quem espera uma sentença já escrita. A cama era grande demais para uma só pessoa, e mesmo ocupando-a por inteira, eu ainda me sentia minúscula.
Os lençóis tinham cheiro de lavanda e de algo caro que eu não conseguia identificar. Não era o cheiro de casa, não era o cheiro de família. Era artificial, planejado, como se alguém tivesse decidido que aquele aroma era o que representava “tranquilidade”. Mas não havia aconchego ali. Era como estar num quarto de hotel: luxuoso, lindo… e vazio.
O relógio dourado sobre a mesa de cabeceira marcava pouco depois das seis da manhã quando a porta se abriu de repente.
Várias pessoas invadiram o espaço como um exército silencioso. Cada uma parecia já saber exatamente o que fazer. Um grupo correu às janelas, escancarando-as sem pedir permissão, deixando a luz fria da manhã inundar o quarto. Outro trouxe bandejas prateadas com frutas cortadas, sucos naturais em jarros de cristal e pães franceses quentes cujo aroma se espalhou rapidamente.
Duas moças, vestidas em seda bege que parecia ter sido engomada só para aquele dia, vieram até mim com sorrisos ensaiados. Seus olhos, porém, não sorriam. Suas vozes eram doces demais para aquela hora da manhã, quase falsas.
— Senhorita Elena, seu banho já está preparado.
Levantei-me devagar, sentindo o frio do chão de mármore sob os pés. Caminhei em silêncio até o banheiro, guiada pelas duas como se fosse uma prisioneira sendo conduzida ao destino.
O banho foi longo, quente e perfumado. Óleos essenciais transformavam a água em seda líquida, e cada respingo parecia grudar na pele. Fechei os olhos, tentando acreditar que aquele calor poderia, de alguma forma, relaxar o que não se acalmava dentro de mim. Mas não relaxava. A cada segundo que passava, meu peito parecia mais apertado, como se eu estivesse sendo preparada não para um casamento, mas para um sacrifício.
Quando saí, já envolta num roupão felpudo branco que pesava nos ombros como um fardo, fui imediatamente cercada. Maquiadores e cabeleireiros se aproximaram com pincéis, sprays e ferramentas de calor. Ninguém me perguntou o que eu queria, o que eu gostava, o que me fazia sentir bonita. Apenas começaram a transformar meu rosto e meu cabelo em algo digno de uma rainha.
Logo depois, a porta se abriu mais uma vez, e o vestido entrou. Não entrou sozinho — quatro pessoas o carregavam como se fosse uma relíquia de igreja. E, de certa forma, era.
Branco como neve. Bordado à mão com linhas finas que desenhavam arabescos delicados. Flores em alto relevo se espalhavam como se tivessem brotado do tecido. Cristais brilhavam sob a luz que atravessava as cortinas, refletindo pequenas estrelas no teto.
Era um vestido de princesa.
Olhei para ele como quem olha para o próprio destino: imponente, pesado, lindo e estranho. Ele não era meu. Assim como aquele casamento ainda não era.
As costureiras me ajudaram a vestir, a prender o corpete, ajustar o véu. Cada gesto delas era firme, rápido, sem espaço para dúvida. Eu me sentia um manequim sendo preparado para uma vitrine. Minha maquiagem já estava impecável — olhos realçados em tons dourados, lábios em um tom suave de pêssego. Meu cabelo, preso em um coque baixo adornado com uma tiara de pérolas.
Eu estava… perfeita. Ou, pelo menos, o que o mundo consideraria perfeito.
Mas algo em mim ainda doía.
Faltava o que era meu. Faltava Diego.
E como se meu pensamento tivesse o poder de invocá-lo, uma voz conhecida atravessou a parede. Não era só uma voz. Era gritaria.
— Não quero saber se estão ocupados! Ela é minha irmã, e eu vou entrar!
Meu coração quase pulou no peito.
— Senhor, o momento não é apropriado — murmurou alguém, provavelmente um segurança.
— Não me importo se estão no meio da preparação do Papa! Eu vou entrar!
Corri até a porta antes que alguém tivesse a brilhante ideia de impedi-lo. Abri-a de supetão e o vi: Diego, meu irmão. Em um terno escuro que parecia recém-vestido às pressas, a gravata torta, o cabelo bagunçado, os olhos cheios de fogo e preocupação.
— Diego… — murmurei, sorrindo de alívio.
Ele me olhou como se tivesse acabado de reencontrar algo que acreditava perdido. Seus olhos marejaram no mesmo instante. Entrou no quarto sem pedir permissão, como se quisesse me proteger de tudo — inclusive da própria decoração sufocante.
— Você está linda… — disse, num sussurro quase magoado. — Mas isso aqui… isso tudo… não é você.
Senti o nó na garganta crescer.
— Eu estou bem. — menti, abraçando-o com força. — Obrigada por vir.
Seu abraço me envolveu como um porto seguro. Eu quis ficar ali para sempre, mas o destino não costuma dar pausas.
Atrás dele, como se fosse ensaiado pelo destino para estragar aquele momento, surgiram os dois responsáveis pela maior parte do meu conflito interno: meus pais biológicos, os D’Amato.
Minha mãe entrou primeiro, impecável em um vestido azul-marinho. Seus olhos eram frios, a boca desenhada em uma linha reta.
— Diego — disse ela, em tom gélido. — Este é um momento delicado. Não é hora de escândalos.
Ele girou para encará-la, cuspindo as palavras como lâminas.
— Delicado é o caralho! Vocês acham mesmo que têm o direito de estar aqui? Depois de anos procurando por ela só para usarem o sobrenome e a jogarem num casamento político?
Meu pai surgiu ao lado dela, tão imponente quanto um juiz diante de um réu.
— Ninguém jogou a Elena em lugar nenhum. — cruzou os braços. — Ela decidiu. É madura o suficiente para isso.
Diego riu sem humor, mas seus olhos ardiam.
— Ela decidiu porque vocês apertaram cada botão psicológico que tinham! Ela tinha uma vida, uma família, e vocês acharam que podiam simplesmente comprar um lugar no coração dela!
— Basta! — gritei, entrando entre eles, com o véu ainda nas mãos. O tecido tremia tanto quanto minhas mãos. — Diego, por favor. Eu sei que você está tentando me proteger, mas esse é o meu momento. Não torne isso mais difícil.
Ele me olhou com olhos feridos, como se eu tivesse acabado de cravar uma faca nele.
— Elena… você merece amor, não um contrato.
Engoli seco.
— E talvez eu encontre amor aqui. — rebati, firme. — Talvez não. Mas isso é uma escolha minha. E se tudo der errado, eu ainda vou ter a mim. E a você. Isso basta.
O silêncio caiu pesado, até que meu pai pigarreou.
— Elena, precisamos ir. Os convidados já estão chegando. A cerimônia será televisionada. A imprensa está presente.
Diego rolou os olhos, a raiva vibrando em cada músculo.
— Claro. Porque o importante é o show, não a filha.
— Diego! — chamei, estendendo a mão para ele. — Só fica. Por mim. Fica e segura minha mão enquanto eu viro essa página. Só isso.
Ele me encarou longos segundos, e o tempo pareceu congelar. Até que, finalmente, suspirou e assentiu.
— Eu vou. Mas se esse idiota te machucar, eu volto com uma marreta.
Sorri, sentindo as lágrimas ameaçarem borrar a maquiagem perfeita.
— Eu sei. Você sempre volta.
Enquanto meus pais saíam em silêncio desconfortável, e Diego a contragosto, voltei para o espelho.
A mulher que me olhava de volta não era a mesma menina que nasceu no inferno e foi criada na zona. Não era a filha adotiva que conheceu o amor simples. Não era a jovem rejeitada pela frieza de um sobrenome.
Era alguém que tinha sido quebrada tantas vezes… mas nunca vencida.
Hoje, eu não era só a noiva.
Hoje, eu era a sobrevivente.
{...}