Leonhart Moreau
Aquela mulher realmente era diferente. Não era apenas uma impressão passageira, nem um capricho da minha mente treinada em exagerar as nuances de qualquer comportamento humano. Elena Vasquez D’Amato era feita de camadas. Quanto mais eu tentava encaixá-la em um molde conhecido, mais ela escapava pelos lados, como água em punhos cerrados.
Eu imaginava uma coisa — uma reação, uma postura, uma queda — e, como um golpe seco no escuro, ela me surpreendia em cada detalhe.
Não houve drama, nem perguntas, nem sequer ressentimento. Apenas dignidade. Silêncio. E um olhar que dizia: "Eu caí, mas não estou quebrada."
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O cristal tilintou quando girei o líquido âmbar dentro da taça. O movimento era automático, quase um ritual que acompanhava minhas reflexões.
— Clóvis, preciso que pesquise tudo sobre Elena Vasquez D’Amato. — minha voz soou calma, mas carregada de intenção. — Tudo o que aconteceu em Nova York e tudo o que ela passou.
Ele não levantou os olhos do notebook. Os dedos longos e ágeis continuaram digitando com precisão quase mecânica.
— Já estou fazendo essa pesquisa, senhor. Sabia que iria me pedir. — respondeu, sem vacilar.
Sorri, um canto apenas.
— Por isso você trabalha para mim.
Clóvis não era apenas meu assistente. Ele era meus olhos onde eu não podia enxergar, meus ouvidos em salas onde eu não entrava e, muitas vezes, minha consciência — uma que preferia se manter fria e metódica, mesmo quando eu me inclinava ao instinto.
Um homem discreto. Leal. E, acima de tudo, meticuloso ao ponto da paranoia. Seu talento era encontrar segredos onde até a própria vítima havia esquecido de procurar.
— Ela foi manchete em todos os tabloides ontem. — Clóvis prosseguiu, a voz sem emoção, como se narrasse o clima. — Abandono no altar. Vestido assinado por uma estilista exclusiva de Manhattan, flores francesas, convidados da alta sociedade... e um vídeo que já passou dos dez milhões de acessos.
Meu maxilar se contraiu.
— Arthur Prescott. — pronunciei o nome como quem cospe veneno. — Esse imbecil trocou Elena por uma ex-namorada superficial?
— Valentina Leclerc. — Clóvis não precisou consultar nada, estava tudo memorizado. — Filha de um magnata francês decadente. Retornou a Nova York esta semana. Publicou uma foto provocativa com a legenda “de volta e solteira” na véspera do casamento.
Deixei escapar um riso curto, carregado de sarcasmo.
— E ele caiu como um adolescente apaixonado. Fraco.
Clóvis manteve o silêncio. Sabia que eu precisava do espaço para organizar meus próprios pensamentos.
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— E o passado dela? Antes de Nova York? — perguntei após alguns segundos, encostando a taça nos lábios, mas sem beber.
— Mais complexo do que pensávamos. — respondeu, franzindo o cenho. — Elena foi encontrada aos quatro anos em um bordel clandestino. Há indícios de que tenha sido traficada. Foi resgatada pela família Vasquez, que a adotou legalmente e a criou ao lado do filho biológico, Diego.
O whisky queimou a garganta quando finalmente engoli.
Aquela informação explicava muito. Explicava a dureza no olhar dela, aquela mistura entre orgulho e ferida.
— E os D’Amato? — perguntei, deixando a taça sobre a mesa de mogno.
— A encontraram quando ela tinha dezessete anos. Houve uma reunião, ela chegou a visitar a casa da família biológica, mas fugiu dias depois e voltou para os Vasquez. Nunca mais quis contato.
— Por quê? — minha voz saiu mais baixa, quase um sussurro.
— Fontes indicam que foi tratada com frieza. Havia um acordo arranjado: casamento com o filho de aliados. Ela recusou e se sentiu usada. Depois disso, cortou relações.
Suspirei, deixando o peso daquelas palavras repousar sobre mim.
Elena não era uma vítima passiva do destino. Era alguém que, diante do frio, preferia correr para a rua em busca de calor. Alguém que se recusava a ser moeda de troca.
E agora estava vindo para Florença. Para se casar comigo.
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— E depois disso? — insisti.
— Cresceu em Nova York com os Vasquez. Estudou, trabalhou, construiu reputação sólida como organizadora de eventos para a elite. Até que conheceu Arthur. O resto o senhor sabe.
Assenti, tamborilando os dedos no braço da poltrona.
— Os pais adotivos?
— Morreram há cerca de um ano. Um acidente de carro. Restou apenas Diego. Ele é extremamente protetor com ela.
Tudo se encaixava. Não era afeto que a trouxera de volta aos D’Amato. Era estratégia. Sobrevivência.
Meu celular vibrou sobre a mesa. A tela iluminou a penumbra do escritório. Uma nova mensagem.
Se vamos fingir que somos perfeitos, é bom que você sorria pelo menos uma vez.
Sorri sozinho. De lado. Aquela mulher…
— Responda por mim, Clóvis.
— O quê exatamente?
— Diga que aceito o desafio. E que o sorriso… vem no casamento.
Pela primeira vez naquela noite, vi os cantos da boca dele se curvarem discretamente enquanto digitava a resposta.
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Levantei-me e caminhei até a janela. Florença se estendia abaixo de mim como um quadro renascentista vivo. As torres da Basílica de Santa Maria del Fiore se erguiam contra o céu escuro, e os telhados vermelhos, como brasas, refletiam a luz dos postes antigos. O perfume das flores das sacadas vizinhas chegava até mim, suave, quase etéreo.
Tudo parecia calmo. Antigo. Eterno.
Mas dentro de mim, havia um furacão.
O casamento seria em breve. Um acordo entre as famílias D’Amato e Moreau, selando alianças que vinham de séculos. Mas não era isso que me movia.
Era ela.
Eu queria entender quem era aquela mulher que caminhou sozinha até a calçada da igreja, sujou o vestido de noiva e, ainda assim, manteve a cabeça erguida.
A mulher que recusou o ouro frio de uma linhagem para abraçar o calor improvável de uma família adotiva.
Que agora, por escolha ou desespero, aceitava se casar comigo.
Não havia romance. Não ainda.
Mas havia curiosidade.
E isso, para mim, era o início de tudo.
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— E o que achou dela? — Clóvis perguntou de repente, erguendo os olhos da tela.
Peguei a taça novamente. O âmbar dançava sob a luz quente do escritório.
— Ela não é o que eu esperava. — respondi, honesto. — Achei que teria que lidar com uma herdeira mimada, chorando por ter sido rejeitada no altar. Mas encontrei alguém… firme. Ferida, sim. Mas com a cabeça erguida.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Está dizendo que gostou dela?
Soltei um meio sorriso.
— Estou dizendo que ela tem potencial. E, se tudo correr como planejado, será uma excelente Moreau.
Clóvis ficou em silêncio por alguns segundos. O tic-tac do relógio antigo preencheu a sala.
— Mas se ela estiver quebrada demais… — ele disse por fim, a voz grave — eu não vou colar os cacos.
Nossos olhos se encontraram.
— Entendido. — respondi, seco.
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Afastei-me da janela e caminhei até a estante de couro, passando os dedos pelas lombadas dos livros. Clássicos de estratégia, memórias de grandes líderes, tratados de guerra e economia. Nenhum deles, percebi, seria suficiente para lidar com aquela mulher.
Precisaria de mais do que estratégia. Precisaria de controle. E, talvez, de um pouco de sorte.
Atrás de mim, o teclado de Clóvis cessou. Senti seu olhar sobre minhas costas.
Na tela do notebook, a imagem congelada de Elena no altar ainda estava aberta. O instante exato em que ela virou as costas ao “felizes para sempre”.
Um momento de ruína.
Mas para mim, era apenas o prólogo de algo muito maior.
A história dela ainda estava só começando.
E, de uma forma ou de outra, eu seria parte dela.
{…}