No Complexo da Penha, o relógio não manda. Quem comanda é o barulho da rua, o cheiro da pólvora, o grito do rádio.
Era sábado, e a casa pequena onde Priscila agora morava vibrava com o som alto da sala. Rute já tinha colocado os louvores no último volume enquanto passava pano no chão. Fabão, deitado no sofá com a camisa suada grudada no corpo, resmungava qualquer coisa sobre não conseguir dormir com aquele barulho de igreja.
Priscila saiu do quarto descalça, o cabelo preso num coque improvisado, e foi direto pra cozinha pegar um copo de água. Evitava cruzar o olhar com Fabão desde a noite passada.
Ele tinha perguntado, meio rindo, meio sério:
— Tá se fazendo de difícil pro B.K, né?
Ela fingiu não ouvir, mas sentiu o gelo descer pela espinha.
Desde o beijo na laje, Priscila não tinha paz.
Dormia mal. Sonhava com o toque quente das mãos dele. A voz grave murmurando no ouvido. O cheiro de cigarro misturado com perfume barato. O gosto do beijo. O gosto do perigo.
Ela já tinha se visto refém antes. Mas nunca desse jeito.
— Vai sair hoje, Pri? — Rute perguntou enquanto trocava a água do balde.
— Não sei. Acho que vou subir na laje mais tarde, pegar um ar.
— Tu viu o movimento de ontem? O morro inteiro comentando. Um vacilão tentou dar perdido no bonde. Sumiu. Dizem que o B.K mesmo foi resolver.
— E resolveu?
— Pri, ele é o B.K. — Rute sorriu sem humor. — Aqui, se ele disser que até o vento obedece, o vento para.
Ela não respondeu. Só sentiu o estômago embrulhar.
Mais tarde, já era quase fim de tarde quando ela subiu pra laje. O sol batia forte, o céu escancarado. A vista dali era bonita, se ela ignorasse a tensão no ar. As casas apertadas, os fios pendurados feito teia e o som que vinha do outro lado — onde a laje de B.K se destacava.
Ele estava lá. Sentado numa cadeira de praia, sem camisa, óculos escuros. Rodeado por dois ou três caras do bonde, cerveja gelada numa mão, cigarro na outra.
Parecia que o mundo era dele.
E era.
Priscila apoiou os cotovelos no murinho da laje e ficou observando à distância. Por um segundo, desejou não sentir nada. Nem medo, nem raiva, nem desejo.
Mas o corpo não ouve a cabeça.
E quando ela percebeu, B.K já estava de pé, olhando direto pra ela. O sorriso torto surgiu, lento.
Ele desceu.
— Achei que cê tava me evitando. — ele disse, parando no topo da escada da laje dela.
— Talvez eu esteja mesmo.
— Por quê?
— Porque eu sei o que cê é, B.K. E não quero isso pra mim.
— Não quer o quê?
— Um homem que manda matar, que vive cercado de arma, que tem mulher diferente todo dia...
Ele se aproximou. Ela recuou meio passo.
— E mesmo assim cê subiu aqui pra me olhar?
Ela mordeu o lábio, nervosa. O olhar dele era um campo minado.
— Eu não sou como as outras. — ela disparou. — Já apanhei demais. Já me quebrei tentando amar quem não presta. Eu tô tentando me reconstruir. E você... é a porra de um furacão.
Ele respirou fundo. Chegou perto, de verdade agora. O rosto colado no dela.
— E se eu te disser que você é o primeiro terremoto que eu deixei me abalar?
O silêncio pesou.
Ela sentiu o corpo estremecer, mas resistiu.
— Cê tá confundindo desejo com sentimento.
— E cê tá confundindo medo com amor próprio.
Ela virou o rosto.
Ele riu.
— Tu tem medo de gostar de mim. Só isso.
— E cê devia ter medo de se apegar.
— Tarde demais.
O clima queimava. A tensão era física. Uma força invisível puxando os dois. Ela podia sentir o peito dele subir e descer devagar, como se controlasse a própria fúria.
— Vai embora, B.K.
— Só se tu disser olhando nos meus olhos.
Ela demorou, mas olhou.
— Vai embora.
Ele deu um sorriso curto, sem alegria.
— Tu não presta nem pra mentir, Pri.
E desceu a escada.
Naquela noite, ela se trancou no quarto. Não queria ouvir a TV alta de Fabão nem o som de louvor de Rute. Ligou o ventilador, deitou no colchão e encarou o teto.
Mas a cabeça girava.
O beijo. A fala dele. O cheiro dele.
E estava.
Dois dias depois, ela saiu cedo pra buscar pão na padaria da viela. Botou uma bermuda jeans, uma blusa larga e foi andando distraída.
Passou por dois soldados do tráfico armados até os dentes. Eles cumprimentaram com a cabeça. O respeito por ser cunhada do Fabão.
Virou a esquina e deu de cara com ele.
B.K tava encostado no muro, falando ao telefone. Quando viu ela, desligou na hora.
— Não me diga que cê acordou pensando em mim.
Ela bufou e tentou passar direto.
Ele puxou o braço dela, sem força, mas com firmeza.
— Tô falando sério, Priscila. Tô tentando não te pressionar, mas cê mexe comigo de um jeito que... porra.
— Isso aqui não vai dar certo.
— Por que não?
— Porque eu tenho cicatriz demais. Porque eu tenho medo. Porque eu não quero me apegar a alguém que pode morrer a qualquer momento.
— Eu também tenho medo, Pri. Só que eu sou o tipo de homem que não corre. Eu enfrento.
— Enfrenta o quê?
— Tudo. Até você.
Ela ficou ali, paralisada.
— Só que se tu continuar correndo de mim, uma hora eu paro de correr atrás. — ele completou, se afastando.
Ela sentiu um soco no peito.
Naquela noite, ela subiu na laje. De novo. Sozinha.
O vento frio balançava as bandeiras. O som distante dos passarinhos se misturava com o eco de um funk longe, muito longe. A cidade toda parecia dormir, menos ela.
E foi ali, encostada no murinho, que ele surgiu outra vez.
— Tu me chamou. — ele disse.
— Eu não disse nada.
— Mas teu olhar gritou.
Ela não respondeu.
Ele encostou atrás dela, o corpo roçando o dela. A mão quente na cintura.
— Última chance, Pri. Se tu quiser fugir, é agora.
Ela virou o rosto, o coração disparado.
— Eu tô cansada de fugir.
O beijo veio como uma explosão.
Não foi doce. Foi intenso. Selvagem. De gente que tava no limite. Ele segurava a nuca dela, como se tivesse medo que ela desaparecesse. Ela agarrava os ombros dele como se o corpo precisasse daquele calor pra continuar respirando.
As mãos dele desciam devagar. O corpo encostado no dela, pressionando contra o muro da laje. O céu estrelado, o silêncio do morro, a pulsação desgovernada.
— A gente vai se queimar. — ela sussurrou, entre o beijo.
— Então vamo queimar junto.
Quando se afastaram, ofegantes, ela ainda tremia.
— Isso não muda quem você é. — ela avisou.
— E nem quem você tá fazendo eu ser.
Na favela, os dias são curtos. As promessas, também.
E ela sabia.
O problema não era mais fugir dele.
Era fugir de si mesma.