Já era noite quando Priscila desceu pra comprar vela. A energia da parte alta tinha caído de novo e ninguém parecia estranhar. Normal. Coisa de rotina no morro.
A viela tava úmida. O chão escorregadio. O céu nublado.
Passou em frente à quadra, onde o bar improvisado ainda servia cerveja quente e carne assada no espeto.
Foi ali que escutou:
— Priscila.
A voz bateu nas costas dela como um vento gelado.
Ele.
B.K estava encostado no portão lateral, cigarro entre os dedos, uma garrafa de cerveja na mão, e a mesma expressão de sempre: um quase-sorriso que confundia mais do que revelava.
— O que você quer? — ela perguntou sem rodeio.
— Só conversar.
— De novo?
— Eu gosto de conversa difícil.
Ela cruzou os braços.
— E se eu não quiser?
Ele deu dois passos pra frente.
— Aí eu volto outro dia.
Ela riu. Um riso nervoso, cortante.
— Você sempre consegue o que quer, né?
— Quase sempre. — Ele ergueu o copo. — Mas você... você é osso duro.
— Eu não sou osso. Sou carne. E tô machucada demais pra mais pancada.
Ele ficou sério. De verdade, pela primeira vez.
— Eu nunca bati em mulher.
— Mas você sabe quebrar de outros jeitos. Com silêncio, com presença, com esse olhar que invade.
Ele se aproximou mais um passo. Agora, a menos de um metro dela.
— Se eu encostar, cê grita?
Ela não respondeu. Só sustentou o olhar.
— Cê quer que eu vá embora?
Ela também não respondeu.
O silêncio entre eles era grito. Era guerra.
Ele levantou a mão devagar e tocou o rosto dela com a ponta dos dedos.
— Cê tá com raiva de mim?
— Tô. — ela disse, firme.
— E com vontade?
Ela mordeu o lábio. E aquilo foi a brecha.
Ele encostou a boca na dela. Devagar. Como quem testa. Como quem invade.
Mas Priscila não era mulher de passividade.
Ela devolveu.
O beijo não foi beijo. Foi embate.
Ele prendeu ela contra a parede de concreto da viela.
As mãos dele na cintura. As dela no pescoço.
Era como se eles dissessem, sem dizer:
“Eu te odeio tanto que quero te ter.”
Mas foi ela quem parou.
Empurrou ele com força.
— Eu não sou mais uma. — ela disse, ofegante.
— Eu sei. — ele respondeu, com a voz rouca.
— Eu não sou brinquedo pra você usar e largar.
— E quem disse que eu vou largar?
Ela fechou os olhos por um segundo. Sentia a boca arder. Sentia o corpo tremer.
Mas também sentia o alerta que gritou dentro dela a vida toda:
“Não confia. Não entrega.”
— Isso nunca mais vai acontecer. — ela disse, tentando retomar o controle.
Ele passou a língua nos lábios, ainda sentindo o gosto dela.
— Você pode falar o que quiser, Pri. Mas teu corpo já respondeu.
Ela virou de costas e saiu andando rápido, como se fugir fosse suficiente pra apagar o incêndio. Mas a cada passo, sentia: o fogo já tava dentro.
Naquela noite, ela chorou no banho.
Chorou de raiva.
E isso… doía mais do que qualquer tapa.
Enquanto isso, B.K fumava o terceiro cigarro da madrugada, sentado no alto da laje.
Os olhos no céu nublado.
O gosto dela ainda na boca.
Pensava nela como nunca pensou em mulher nenhuma.
E sabia: aquilo era perigo.
Porque ela não era dele.
Mas já morava na cabeça dele.
E rei nenhum dorme em paz quando tá apaixonado.
Ela saiu andando rápido pela viela, como se o passo acelerado pudesse apagar o que acabou de acontecer. Mas o corpo... o corpo parecia rir da tentativa. Cada centímetro ainda lembrava o toque dele. A boca latejava. O cheiro dele grudado na pele.
“Burra.”
Subiu os degraus que levavam à casa de sua irmã com raiva nos calcanhares. Cada passo ecoava entre a culpa e o tesão.
— Que demora é essa, menina? — Rute resmungou da cozinha, mexendo o feijão no fogão a lenha.
Priscila jogou o pacote de velas na mesa e foi direto pro banheiro. Precisava apagar o fogo que queimava por dentro.
Enquanto a água fria caía sobre os ombros, ela tentava entender o que tinha acabado de acontecer. Não era só um beijo. Foi um confronto. Uma guerra que ela perdeu quando os lábios se encontraram. A forma como ele segurou sua cintura, como roçou a barba malfeita no queixo dela...
Era como se tivesse rasgado alguma coisa por dentro.
E agora?
Como olhar na cara dele?
Como se proteger de alguém que sabia exatamente onde tocar?
Saiu do banho, vestiu um moletom largo, amarrou o cabelo e deitou com o peito disparado.
Só a lembrança daquela boca.
No dia seguinte, desceu cedo pra pegar pão na padaria da esquina. O céu estava claro, mas o morro ainda amanhecia com a cara fechada. Cachorro revirando lixo, criança correndo descalça, carro de som passando com música gospel às alturas.
Ela caminhava rápido, rezando pra não encontrar ninguém.
Mas o morro parece ter ouvidos.
— Pri! — gritou Daiane, sentada na escadaria com outras meninas.
Ela forçou um sorriso, sem vontade de socializar.
— Sumida, hein? — Daiane se levantou, já com a língua solta. — Dizem que cê e o B.K tavam trocando ideia ontem à noite... É verdade ou boato?
Priscila travou.
— Quem falou isso?
— Ué, morro inteiro viu vocês ali perto da quadra... E teve gente que jurou que viu beijo.
Ela sentiu o rosto queimar. Olhou em volta, procurando saídas.
— Não aconteceu nada, Dai. Ele só perguntou umas coisas. Só isso.
— Ah tá, sei. — Daiane sorriu com malícia. — Então teu pescoço vermelho foi mosquito, né?
Priscila apertou o pão na mão e desceu sem responder.
Cada vez que o nome dele cruzava o dela, a favela tremia.
À tarde, ficou em casa ajudando sua irmã Rute. Lavou louça, separou roupa, cuidou do pequeno Tonho, primo doente que a tia largava sempre ali. Tentou ocupar o pensamento. Mas a lembrança insistia.
Por volta das quatro, escutou passos no corredor.
— Pri... abre aí.
Ela gelou.
A sogra de Rute dormia no quarto dos fundos, o radinho ligado baixo com a programação evangélica.
Ela abriu devagar. Só a fresta.
— O que você quer?
— Te ver.
— Não pode.
— Por quê?
— Porque eu não sou mulher de bandido.
Ele riu baixo.
— E eu pareço bandido agora?
— Você é o dono disso tudo, B.K. O morro tem medo de você.
Ele encostou na porta, tirando o boné e ajeitando o cabelo com a mão tatuada.
— Eu não vim pra te meter medo. Vim porque ontem... ficou coisa no ar.
— Ontem foi um erro.
— Então me deixa errar mais uma vez.
— Não.
Ela tentou fechar a porta, mas ele segurou.
— Cê acha que vai conseguir me evitar?
— Eu já evitei homem pior que você.
— Eu não sou pior. Só sou real.
— E eu não quero real. Quero paz.
Ele olhou dentro dela. Por segundos. Longos. Silenciosos.
— Eu também queria paz. Mas desde que te vi naquele dia no portão... parece que meu peito não cabe mais no peito.
Ela sentiu a garganta fechar.
— Vai embora, B.K. Por favor.
Ele soltou a porta. Não por desistir, mas por respeitar.
— Eu vou. Mas se tua boca ainda lembrar da minha... você me chama.
E foi embora.
A noite caiu.
Mas B.K... era diferente. Não porque era menos perigoso. Mas porque, justamente sendo perigoso, fazia ela se sentir viva.
Talvez fosse isso o mais assustador.
Enquanto isso, ele voltava pro QG do alto do morro.
Mas ele...
Pensava na boca que queimava.
E entendeu:
Aquilo não era só fogo. Era vício. Era veneno.
E ele… tava pronto pra se envenenar outra vez.