Acordou atrasada.
De novo.O celular havia descarregado durante a madrugada e, quando abriu os olhos, a luz do sol já inundava o quarto. Mal teve tempo de se trocar — prendeu os cabelos em um coque frouxo, passou um batom qualquer e saiu com um café na mão, sem conseguir tirar o gosto da noite anterior da garganta.
Ao descer as escadas do Caligrafia, o estômago se revirava.
Era só cansaço. Era só tensão. Era só... medo do que encontraria.
E tinha razão.
Assim que dobrou a esquina do corredor, viu a porta de vidro do restaurante aberta, com homens engravatados entrando e saindo, o coração deu um pulo.
Frenou os passos. Por um instante, pensou em recuar. Respirar. Mas já era tarde demais.
— Valentina Costa? — Um dos homens se aproximou antes mesmo que ela tivesse a chance de falar qualquer coisa. — Podemos conversar?
— Quem são vocês?
— Análise forense da seguradora. A pedido do senhor Augusto Costa.
Claro.
O pai tinha agido antes mesmo que ela despertasse. Provavelmente porque ele já sabia. Talvez tivesse até planejado algo. Ela não sabia mais onde terminava a autoridade dele e começava a manipulação.
Por dentro, queria gritar. Por fora, sorriu com os dentes cerrados e concordou, o seguindo, sentindo o ar impessoal como se o restaurante — de repente — não fosse mais seu.
A cena parecia uma invasão.
As mesas estavam afastadas, os tapetes enrolados, técnicos tiravam fotos do teto, da instalação elétrica, do chão, da base dos aquecedores. Ela viu um deles vasculhar o alçapão da despensa — onde ninguém mexia havia anos.
Como conseguiu dormir nessa situação? Eles deviam estar fazendo muito barulho.
Sentiu o estômago se contrair.
E foi então que o viu, de novo, como uma sombra que sempre sabia onde estar.
Heitor.
Ele estava encostado na parede dos fundos, de braços cruzados, observando tudo. Quando os olhos dele encontraram os dela, Valentina sentiu o peito se contrair.
Ele se aproximou devagar, com aquele andar silencioso que a irritava por não fazer barulho suficiente para ela saber quando ele vinha.
— Dormiu mal — ele comentou. Não era uma pergunta.
— Não é da sua conta.
— Isso aqui também não deveria ser — ele disse, olhando em volta. — Mas é.
— Meu pai mandou vocês?
— Eu vim por conta própria. Fiquei sabendo do movimento.
Ela arqueou a sobrancelha.
Ele estava tentando ser engraçado?
Com certeza tinha sido Heitor a pessoa a receber os homens da seguradora sob as ordens de Augusto.
— E como, exatamente, você ficou sabendo? Você não dorme?
Ele deu de ombros. Mas havia algo estranho na maneira como os olhos dele se mantinham em alerta. Como se mapeassem tudo. Como se esperassem algo.
— Acha que foi sabotagem? — ela perguntou, de forma mais baixa, só para ele.
— Acho que alguém sabia que aquele aquecedor estava com defeito. E alguém deixou cair álcool onde não devia. Pode ter sido acidente. Mas... — Ele olhou nos olhos dela. — Talvez não tenha sido.
Pensou em perguntar mais, mas sabia que o segurança não responderia, não sem a permissão do Senhor Costa.
O silêncio entre os dois era grosso como fumaça.
Valentina desviou o olhar e andou até a cozinha. Precisava respirar.
O que mais estavam escondendo dela?
***
Passou o dia respondendo perguntas dos peritos, dando entrevista para a polícia civil e lidando com um inspetor sanitário que apareceu para uma “visita surpresa”. Não havia mais dúvidas: estavam tentando desestabilizá-la. Ou o restaurante. Ou ambos.
Mas por quê?
Quando o sol já começava a se pôr, ela entrou no escritório nos fundos para organizar alguns papéis e encontrou Heitor mexendo em sua estante.
— Perdeu alguma coisa? — ela perguntou, cruzando os braços.
Ele se virou, calmo como sempre.
— Estava vendo os contratos de fornecedores. Alguns têm cláusulas incomuns.
— E você agora também é auditor? Ou só está vasculhando minha vida por diversão?
A voz saiu mais cortante do que ela pretendia. Mas não voltou atrás.
— Estou tentando manter você viva, Valentina. Acha que é fácil com tanta gente interessada em ver você falhar?
Ela apertou os olhos.
— Você fala como se soubesse mais do que diz.
Ele ficou em silêncio por um segundo a mais do que deveria.
— Sei o suficiente.
Ela se aproximou. Não por impulso. Mas por raiva.
— Você não é só um segurança, não é?
Nada.
— O que meu pai te contou quando te contratou? Que eu era frágil? Que precisava de babá? Ou que eu era um alvo? — Ela se aproximou mais. — Quem é você, Heitor?
Por um instante, achou que ele responderia.
Mas ele apenas disse:
— Alguém que não quer te ver morta.
Valentina mordeu a língua. Sentiu o coração disparar.
— Isso não é uma resposta, é seu trabalho.
— Não é. Mas é o melhor que posso te dar agora.
Ele saiu da sala.
E ela, sozinha, fez o que não queria: sentou-se, abriu o notebook... e começou a procurar.
Se Heitor não queria contar quem era, ela mesma descobriria.