Ignorar.
Era o que Valentina decidira fazer. Depois do embate daquela manhã, depois do susto de vê-lo no seu apartamento, depois do toque firme que ainda ecoava no pulso, ela entendeu que Heitor não iria embora. Pelo menos não por enquanto.
Então o ignoraria.
Como se ele fosse uma peça do ambiente. Um móvel mal posicionado. Uma sombra no canto do olho.
E funcionava — mais ou menos.
No restaurante, ela se afundava nas tarefas. Eram notas fiscais, fornecedores, o novo cardápio de primavera. E, como se não bastasse, agora havia o evento.
Um jantar fechado para a elite da cidade: Bárbara Lacerda, a socialite das joias e colunas de fofoca, e o novo marido dela, um investidor misterioso e arrogante que comprava terrenos como quem comprava café. O pai de Valentina era sócio em três empreendimentos com ele — e, claro, foi ele quem “sugeriu” que o evento acontecesse no Caligrafia.
Valentina odiava bajular ricos, mas adorava criar experiências gastronômicas únicas. E isso, pelo menos, era dela.
Passou três dias mergulhada no projeto: vinhos naturais harmonizados com entradas leves; carpaccio de vieiras com emulsão de limão e bottarga; prato principal com filé de cordeiro e purê de alcachofras defumadas. Doces artesanais e petit fours. Montou arranjos, luz ambiente, trilha sonora. Tudo milimetricamente pensado.
Heitor, claro, observava tudo.
Calado. Sempre por perto. Às vezes na cozinha, às vezes na entrada. Às vezes onde ela nem percebia — até virar e dar de cara com ele.
Ela tentou não perceber. Tentou mesmo.
***
Na noite do evento, o restaurante inteiro cheirava a lavanda e açúcar queimado. As velas tremeluziam sobre as mesas, as taças brilhavam sob a luz suave. A elite da cidade ria alto, fotografava os pratos e comentava sobre viagens e negócios com o entusiasmo entediado de quem já viu tudo.
Valentina andava entre as mesas com um vestido grafite, cabelos presos num coque elegante e um sorriso profissional no rosto. Tudo estava saindo como planejado.
Até que o estalido veio.
Vidro quebrando.
Um grito.
E então o som pesado de metal batendo no chão.
Ela se virou a tempo de ver a bandeja cair de uma das mãos do garçom novo — e o aquecedor de gás portátil tombar no canto do salão, direto para cima de uma toalha de linho.
As chamas surgiram como uma explosão pequena, mas ameaçadora, lambendo a ponta da mesa, pegando a decoração de flores secas.
— Afastem-se! — ela gritou, correndo para o foco do incêndio.
Mas antes que pudesse chegar lá, Heitor surgiu.
Em dois segundos, ele já estava sobre a chama. Com um cobertor de emergência da entrada do restaurante, abafou o fogo com movimentos rápidos e certeiros. Não hesitou. Não recuou. Quando os seguranças do casal chegaram com extintores, ele já havia resolvido.
Mas então tudo ficou em silêncio por um instante.
Ela não percebeu o perigo até sentí-lo.
Uma estrutura da luminária central, presa por cabos velhos, havia se soltado com a vibração da correria — e caía direto sobre ela.
Não deu tempo de reagir.
Só sentiu o impacto do corpo de Heitor contra o seu, derrubando-a no chão, cobrindo-a com o próprio corpo enquanto o lustre estourava ao lado deles, espalhando estilhaços de vidro para todo lado.
O tempo parou.
Valentina mal conseguia respirar debaixo dele. Sentia o peso, o calor. O peito de Heitor subindo e descendo com violência. A respiração dele ofegante contra o pescoço dela.
— Você está bem? — ele perguntou, a voz rouca, intensa.
Ela assentiu, sem conseguir falar de imediato. O coração disparado. Os sentidos confusos.
Ele a encarou de perto. Os olhos negros, cheios de algo que ela não sabia nomear. Raiva? Alívio? Medo?
— Tá todo mundo olhando — ela sussurrou, tentando desviar o rosto.
Mas ele não se mexeu.
— Dane-se. — A palavra saiu baixa, quase imperceptível. Como se não fosse pra ela. Como se fosse pra si mesmo.
***
Depois disso, o evento seguiu num ritmo mais contido. O incidente foi abafado com vinho e charme. A socialite adorou “o drama da noite” e disse que era chique ter uma história para contar. Os convidados foram embora elogiando os pratos, mesmo que por pouco não tivessem virado churrasco humano.
Valentina ficou até o fim, recolhendo os cacos — do restaurante e de si mesma.
Na cozinha vazia, mais tarde, Heitor apareceu. Limpou um corte no braço com o kit de primeiros socorros e não disse nada.
Valentina se aproximou devagar, sem saber exatamente o que queria dizer.
— Obrigada.
Ele não respondeu.
— Por tudo. Não só pelo fogo. Pelo... — ela fez um gesto no ar, engolindo seco. — Lustre. E por me tirar do chão.
— Só fiz o que sou pago pra fazer.
Ela queria acreditar na frieza da resposta. Mas tinha visto nos olhos dele: aquilo foi mais do que trabalho.
Heitor era diferente de todos os seguranças que seu pai já contratara, sentia isso.
Por isso era tão difícil odiá-lo.
E, no fundo, temia que ele soubesse disso.