O silêncio dele era o que mais irritava.
Não os passos firmes demais, nem a forma como surgia nos cantos como uma sombra armada. Era o silêncio. Como se estivesse sempre escutando. Observando. Julgando.
Era o terceiro dia desde que Heitor assumira oficialmente como seu segurança. “Para sua proteção”, diziam os advogados do pai. “Ameaças externas. Precaução.” Como se ela não soubesse exatamente o que isso significava: mais um elo na corrente invisível que a prendia à vontade de Augusto Costa.
Valentina cortava cebolas com mais força do que o necessário. A lâmina da faca fazia um som seco contra a tábua, e ela não se importava com as lágrimas que não vinham só por causa do enxofre.
— Val, a carne chegou — avisou Luísa, entrando pela porta dos fundos com um tablet na mão.
— Ótimo. Manda verificar peso e temperatura. E vê se o fornecedor finalmente mandou as peças Angus. — Ela limpou os olhos rapidamente com o antebraço.
— Ele tá lá fora também.
Ela não precisou perguntar de quem Luísa falava. Heitor.
Claro que estava. Ele parecia se multiplicar. Um minuto vigiando o salão, no outro nos fundos, depois surgia no corredor dos funcionários como se fosse parte da mobília.
Não sabia como um homem daquele porte conseguia ser tão silencioso e invisível nos momentos que queria.
Na maior ´parte do tempo, era apenas sufocante.
Valentina respirou fundo, largou a faca e foi até a porta de carga.
Lá estava ele. Em pé, braços cruzados, ao lado do caminhão frigorífico, observando cada movimentação como se esperasse um ataque a qualquer momento. Não dizia nada, nem cumprimentava ninguém. Mas seu olhar fazia os funcionários andarem mais rápido.
— Você não tem o que fazer além de assustar os entregadores? — ela perguntou, parando a dois passos dele.
Heitor virou o rosto devagar, com a mesma calma de sempre.
— Estou aqui pra garantir que nada aconteça com você.
— Estou em uma entrega de carne, não em uma zona de guerra.
— A diferença entre uma coisa e outra pode ser de segundos — ele respondeu, olhando para o motorista, depois de volta para ela. — Você prefere que eu relaxe?
Valentina o encarou por um momento longo demais. Ele era insuportavelmente calmo. E aquilo a desconcertava.
— Prefiro que não torne meu restaurante um campo de batalha mental. — Ela virou as costas e voltou para dentro.
Mas, claro, ele seguiu.
Sempre atrás. Sempre observando. Como se esperasse que ela tropeçasse.
De volta à cozinha, Valentina mergulhou no caos do almoço. Pedidos acumulados. Um molho que talhou. Um cliente exigente na mesa seis, sempre a maldita mesa seis. Era ali, no meio do calor e da pressa, que ela sentia que era dona de si. E mesmo assim, no fundo da mente, a presença dele nunca sumia.
Sentia os olhos dele. Mesmo sem olhar.
No fim do expediente, sozinha no escritório, ela se jogou na cadeira. Tirou o avental, soltou os cabelos e encarou o teto. O coração batia como se ainda estivesse correndo.
Heitor a deixava em alerta constante.
E o mais inquietante?
Ela não sabia se queria que isso parasse.
***
Ela ainda estava jogada na cadeira do escritório quando o celular vibrou sobre a mesa.
[19:03] Guilherme: Estou no estacionamento. Ainda lembra de mim, chef?
Valentina sorriu sem querer.
Fazia quase dois anos desde a última vez. Guilherme havia sido seu primeiro caso sério depois da faculdade — um enólogo apaixonado, de riso fácil, que a fazia esquecer por algumas horas o peso do sobrenome que carregava. Mas também tinha ido embora quando ela recusou uma vida “mais leve” ao lado dele em Portugal. Disse que ela estava presa ao império do pai. Ela disse que ele era covarde.
Talvez os dois estivessem certos.
Mas Valentina também sabia que a família a perseguiria onde quer que fosse.
Então as coisas acabaram assim.
Jogou água no rosto, trocou o avental por um vestido preto simples e uma jaqueta de couro. Um salto baixo. Cabelo solto. Batom vinho. Queria parecer como sempre foi: no controle. Mesmo que por dentro estivesse… dividida.
Ao sair pela porta lateral, viu o carro esportivo de Guilherme. E claro, o vulto escuro de Heitor a poucos metros, ao lado do próprio carro preto blindado.
Ele a olhou, como sempre fazia. Sem expressão. Sem perguntas. Mas ela sabia.
A simples presença dele naquela noite era uma pergunta.
Ela parou diante dele antes de ir ao carro de Guilherme.
— Você não vem.
— As instruções são pra manter você à vista.
— As instruções mudaram. Isso é um encontro. Eu não preciso de uma babá armada encostada na mesa do restaurante.
— Não vou encostar. Vou observar de longe.
Ela se aproximou um pouco mais, a voz mais baixa, firme:
— Heitor. Eu estou dizendo: me dá espaço.
Ele olhou fundo nos olhos dela por um segundo longo. Então desviou o olhar para Guilherme, depois voltou para ela.
— Se ele levantar a voz, ou encostar em você de um jeito errado, eu quebro os dois braços dele.
Ela prendeu o riso.
— Que romântico.
Virou as costas e entrou no carro.