O restaurante era elegante, discreto. Velas baixas, vinho tinto, música ambiente. Guilherme estava exatamente como ela lembrava: charmoso, provocador, ainda apaixonado pelo som da própria voz. Durante os primeiros vinte minutos, ela relaxou. Riu. Bebeu.
Ele era embriagante.
Mas então começou.
— Você ainda tá com aquela obsessão pelo restaurante, né? Achei que esse lugar fosse só uma fase.
— Não é uma fase, Gui. É minha vida.
— Mas sua vida mesmo não é essa. É o império do seu pai. Você finge que não é parte, mas sabe que tá até o pescoço.
Valentina encostou a taça na mesa com um leve estalo.
— Se veio aqui pra me lembrar do que meu sobrenome carrega, economiza. Eu já acordo lembrando disso todo dia.
Ele recuou um pouco, sorriu, pediu desculpas. Tentou tocar na mão dela, mas ela puxou devagar.
Não era mais o mesmo. Ou talvez ela não fosse.
E então ela o viu.
Pela janela envidraçada, do outro lado da rua, parado ao lado de um poste — Heitor. Ombros retos, mãos nos bolsos do casaco. Observando. Sempre observando.
Ela virou o rosto rapidamente. O calor subiu pelo pescoço.
O que ele achava que estava fazendo?
Guilherme não notou. Estava ocupado demais falando sobre vinhos e viagens que ela não queria fazer.
Duas taças depois, ela encerrou o encontro com um beijo educado na bochecha e um “foi bom te ver”. Esperava uma noite despreocupada com um sexo casual, mas acabou com azia e mau-humor induzido.
Era difícil conhecer novas pessoas já que o restaurante tomava todo o seu tempo, mas as antigas também não prestavam nem um pouco.
Ossos do ofício.
Entrou no próprio carro, que mandou um funcionário trazer — Heitor já estava no veículo dele, à espera.
Ela dirigiu. E ele seguiu.
***
De volta ao restaurante, já vazio, entrou pela porta dos fundos, tirou os saltos, jogou a jaqueta no balcão e subiu para o pequeno apartamento acima da cozinha. Ali era o único espaço que sentia realmente seu.
Mas quando olhou pela janela da varanda, lá estava ele de novo. Do lado de fora. De pé.
Ele me vigiou a noite toda.
O celular vibrou.
[22:49] Heitor: Ele te incomodou?
Ela não respondeu.
Encostou a testa no vidro. Sentiu o frio da noite. E mais frio ainda o buraco que aquele encontro abriu dentro dela. Guilherme não era a resposta.
Mas a pergunta… a pergunta parecia estar do lado de fora, com olhos escuros demais e passado que ela não conhecia.
***
Na calçada, Heitor não fumava, não se mexia, não fazia nada além de lembrar.
A mulher que ele perdera — que ele amava — também confiara demais em alguém do passado. E pagara com a vida. Ele não deixaria isso acontecer de novo.
Não com Valentina.
Mesmo que um dia fosse ele quem puxasse o gatilho.
***
O sol mal havia atravessado as frestas da cortina quando Valentina sentiu o incômodo conhecido apertar o peito.
Algo estava errado.
O silêncio do apartamento era absoluto — e mesmo assim, ela sentia a presença de alguém. Não barulho. Presença. Como uma corrente de ar gelada no pescoço.
Jogou os lençóis para o lado, ainda vestida com a roupa da noite anterior. A cabeça doía um pouco, e a garganta estava seca. Ela saiu do quarto descalça, os passos leves, os sentidos em alerta.
E então o viu.
Sentado no sofá de couro da pequena sala, com os braços apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas, estava Heitor.
Como se aquilo fosse absolutamente normal.
— O que você está fazendo aqui? — a voz dela saiu rouca, atravessada por um susto que se transformava rapidamente em raiva.
Ele levantou o olhar para ela com a mesma tranquilidade que sempre carregava. Incompreensível. Imperturbável.
— Porta dos fundos estava aberta. O segurança noturno do restaurante me avisou que você chegou sozinha. Subi.
— Isso não te dá o direito de entrar no meu apartamento! — ela se aproximou, os cabelos ainda desgrenhados da noite anterior, os olhos faiscando. — Sai daqui, agora.
Heitor ficou de pé. E quando ele fazia isso, era como se ocupasse mais espaço do que o físico permitia. Grande. Sólido. Quase uma parede.
— Augusto pediu que eu ficasse por perto. Bem perto. Mesmo que você não goste.
— Isso aqui é invasão, Heitor. Eu poderia chamar a polícia.
Ele deu um passo à frente.
— Pode. Mas antes, talvez seja bom lembrar que seu pai assinou um contrato me autorizando a garantir sua integridade 24 horas por dia.
Valentina travou.
Aquilo não era só sobre segurança. Era sobre domínio. Era mais uma corda puxada por Augusto Costa para lembrar quem estava no comando.
Ela levantou a mão, o impulso falando mais alto do que o bom senso.
— Você é um filho da—
A frase morreu quando ele segurou o punho dela no ar.
Não com força. Não de forma violenta. Mas com firmeza suficiente para que ela entendesse: ele era treinado. Ele poderia pará-la com um único movimento.
A proximidade era sufocante.
Valentina sentiu o calor do corpo dele atravessando o espaço entre eles. A mão dele era quente. Forte. E o toque… estranhamente cuidadoso.
— Me solta — sussurrou, com o coração disparado.
Ele soltou.
Mas não recuou.
Ficaram ali, frente a frente, respirando no mesmo ritmo. Olhos nos olhos. A tensão entre os dois era feita de tudo que não era dito: raiva, orgulho, medo. E algo que ela não queria admitir.
A forma como o peito dele subia e descia lentamente. A mandíbula cerrada. O cheiro discreto de couro e sabonete caro.
Ela odiava aquilo. Odiava como o corpo dela reconhecia o dele. Como se dissesse: perigo... mas também algo mais.
— Você não tem o direito de me vigiar assim. Eu não sou uma prisioneira.
— Não, Valentina. Mas o mundo lá fora pode te tratar como uma. Você sabe disso.
Ele falou o nome dela pela primeira vez. Com um peso diferente. Como se a conhecesse.
Ela recuou um passo. Não por medo. Mas porque precisava de distância. Ar. Equilíbrio.
— Se vai ficar por perto, Heitor, então saiba que eu não sou sua missão. Eu sou uma mulher. E odeio ser observada como um alvo.
Ele não respondeu. Só assentiu uma vez.
Valentina virou as costas e entrou no banheiro, batendo a porta com força. Encostou a testa no espelho, o coração ainda martelando no peito.
“Ele me viu vulnerável. E agora viu o que acontece quando eu quebro.”
O mais assustador? Pela primeira vez... ela achava que ele não a julgava por isso.
E isso a deixava ainda mais confusa.