Mundo de ficçãoIniciar sessãoO sol de Ibiza era impiedoso. O tipo de sol que grudava na pele, que fazia qualquer pessoa parecer mais bonita e mais perigosa. O iate branco cortava o mar azul-turquesa como se fosse dono dele, e eu estava esticada na espreguiçadeira de proa, óculos escuros cobrindo meus olhos e um Aperol Spritz na mão. Tentava acreditar na mentira que me contei ao acordar: “Hoje vai ser tranquilo.”
Tranquilo? Com Dante por perto? Ilusão barata. Ele estava lá. Sempre estava. Como sombra, como predador. Eu sentia antes de ver. Santi, no auge da sua genialidade, decidiu que um passeio de barco seria “relaxante”. Relaxante para ele, talvez, que já tinha desaparecido para o convés de baixo com duas modelos que riam alto demais para ser natural. O resultado? Eu e Dante sozinhos no convés superior. O vento batia, bagunçava meu cabelo, levantava o vestido leve que eu prendia com uma das mãos. E ainda assim, o incômodo real vinha do peso do olhar dele. Sempre fixo, sempre constante. — Se continuar me olhando assim, vai me dever um drink — disparei, sem virar o rosto. — Não estava olhando. — A voz dele veio grave, carregada daquele sotaque que parecia pecado. — Estava analisando. Revirei os olhos por trás dos óculos. — Analisando? Você não é psicólogo, Dante. No máximo, segurança de luxo. Um som baixo escapou dele. Não era riso. Era provocação. — Engraçado ouvir isso de você. Se alguém aqui parece precisar de coleira, é você. A insolência dele me fez virar de vez. E lá estava: camisa branca aberta até o peito, pele dourada pelo sol, colar prateado descansando contra a clavícula. E aquele sorriso preguiçoso, como se tivesse acabado de descobrir a minha fraqueza. — Você é tão previsível. — Cruzei as pernas com exagero, sorvendo mais um gole. — Camisa aberta, corrente brilhando, cara de “sou proibido, mas irresistível”… Aposto que praticou no espelho. Ele se inclinou um pouco, o braço apoiado na espreguiçadeira, invadindo o meu espaço. — Só não pratico mais do que você. — O olhar dele passeou descarado pelo meu corpo. — E, sinceramente, você exagera. — Exagero? — arqueei a sobrancelha. — Traduzindo: meu charme é demais para você lidar? — Traduzindo: você precisa de plateia. — A voz dele soou calma, mas feriu mais que grito. Aquilo atingiu fundo. Não porque fosse mentira, mas porque ele ousou me dizer em voz alta. — Melhor plateia do que ser um cachorro obediente — devolvi, sorrindo doce, mas venenosa. Ele não respondeu. Só me olhou. Longo. Intenso. Como se estivesse me despindo sem mexer um músculo. O barco deu um solavanco repentino, e meu Aperol virou inteiro no meu colo. — Merda! — levantei, o vestido de seda colando no corpo. Dante gargalhou. Gargalhou como se eu fosse a piada mais deliciosa do universo. — Você nasceu pro espetáculo, Agatha. Até quando se molha, é cena. — Vai pro inferno. — Tentei sacudir o vestido, em vão. Ele se aproximou, sorriso ainda presente. — Quer que eu ajude? — Se tocar em mim, eu te jogo no mar. — E eu aceitaria de bom grado. — A malícia na voz dele me fez arrepiar, apesar de mim. Com raiva de mim mesma, saí dali quase tropeçando. Desci a escada lateral, atravessei o corredor apertado e entrei em uma das cabines. Arranquei papel toalha, tentando secar a seda molhada. Claro que não fiquei dois minutos sozinha. — Vai ficar me seguindo até dentro do banheiro, é isso? — perguntei, sem olhar, ouvindo a porta ranger. — Não estou seguindo. — Ele encostou no batente com aquela postura preguiçosa e irritantemente masculina. — Estou coincidindo. Olhei incrédula. — Coincidindo? Sério? Ele ergueu os ombros. — Funcionou. Estou aqui. Bufei. — Você é insuportável. — E mesmo assim, não consegue ficar longe de mim. Revirei os olhos. — Você é o típico homem que acha que toda mulher quer você. Surpresa: ninguém aqui está pensando em você. Ele me encarou como se tivesse descoberto minha mentira antes de eu abrir a boca. Maldito. O barco balançou de novo, e dessa vez fui jogada contra ele. Colidi no peito duro, sentindo o calor da pele através da camisa aberta. O cheiro dele — sal, madeira, sol e um fundo de especiarias — me embriagou mais do que qualquer coquetel. Meu coração martelava, mas mantive o rosto erguido. — Essa é a sua chance de me empurrar — ele murmurou, perto demais. Eu sorri. Um sorriso doce, venenoso. — Empurrar você? Eu não desperdiçaria energia. Ajeitei o vestido molhado, me afastando com calma. Caminhei até a porta, mas antes de sair, joguei por cima do ombro: — Você acredita demais no próprio charme, Dante. E eu não vou facilitar sua vida. Saí deixando-o ali, sozinho, encostado na porta. Só que, pela primeira vez, tive certeza de uma coisa: eu o havia deixado frustrado. E saber disso era viciante. Mais tarde, quando voltei ao convés, ele estava lá de novo. Claro que estava. Só que agora deitado, relaxado demais, como se nada tivesse acontecido. Como se eu não fosse mais que vento. E aquilo me irritou. Peguei outra taça, sentei ao lado e deixei o silêncio crescer. Ele abriu um olho, preguiçoso. — Achei que tivesse ido trocar de roupa. — E te dar o prazer de pensar que corri por causa de você? Jamais. — Cruzei as pernas, exibindo o tecido ainda marcado. Um sorriso lento surgiu nos lábios dele. — Então ficou molhada por mim. O Aperol quase entornou da minha mão. — Você não presta. — Nunca disse que prestava. — Ele fechou os olhos de novo, como se tivesse vencido. Senti uma pontada de raiva. Então me inclinei, aproximando a boca do ouvido dele. — A diferença, Dante, é que eu sei exatamente como jogar esse jogo. Deixei a frase suspensa no ar e me afastei antes que ele pudesse reagir. Vi, de relance, os dedos dele se fechando em punho no descanso da cadeira. Dante, finalmente, estava mordendo o próprio veneno. E eu? Eu estava me deliciando com o sabor. A maré estava subindo. E quando nos engolisse, nenhum dos dois teria para onde escapar. ----- O riso agudo veio primeiro. Aquele tipo de risada que arranha os ouvidos, exagerada, quase teatral. Eu sabia de onde vinha: do convés inferior. — Não pode ser verdade… — murmurei para mim mesma, apertando a taça como se fosse um amuleto. Levantei e desci as escadas, seguindo o barulho. Lá estavam elas: duas modelos com biquínis tão minúsculos que poderiam ser classificados como fita isolante, espalhadas no sofá de couro branco da cabine. Entre elas, claro, Santi, camisa aberta, gargalhando com uma naturalidade que eu não via nele quando falava comigo. E no canto, como um espectador entediado, Dante. Sentado, pernas abertas, um copo na mão e o olhar… preguiçoso demais. — Ah, olha ela! — disse uma das meninas, a morena de olhos verdes, batendo palmas como se eu fosse um show à parte. — A amiga séria! Amiga séria. Tive vontade de jogar meu Aperol na cara dela. — Boa tarde pra você também. — Forcei um sorriso ácido. — A propósito, vocês estão gritando tanto que dá pra ouvir até em Ibiza. A loira riu mais alto ainda, tombando para o lado. — É que o Santi é muito divertido. Você devia relaxar mais, sabia? — E me lançou um olhar de cima a baixo, como se eu fosse uma freira infiltrada em um clipe de reggaeton. Respirei fundo. Muito fundo. — Relaxar, querida, é o que eu faço quando não preciso ouvir vozes que soam como pássaros sendo estrangulados. A loira arregalou os olhos. Dante tossiu para disfarçar o riso. Santi balançou a cabeça, divertido com o caos que eu naturalmente atraía. — Agatha, por favor… — ele começou, ainda rindo. — São minhas convidadas. — Eu percebi — devolvi. — Sua escolha de companhia fala muito sobre você. O silêncio caiu por um segundo. As duas se entreolharam, ofendidas. Dante se mexeu na cadeira, aquele sorriso maldito surgindo no canto da boca. — Gosto quando você fica ácida — ele disse, devagar, como se provasse cada sílaba. — Fica… mais interessante. Ignorei-o. Ignorei como quem ignora um mosquito, mesmo sabendo que vai picar. A morena, no entanto, não perdeu a chance de cutucar: — Você deve ter ciúmes. Sorri, mostrando os dentes. — De quê? Do desfile da Victoria’s Secret versão liquidação? Santi gargalhou tão alto que quase derramou o drink. Dante, por sua vez, só me olhava, como se minha fúria fosse a droga mais viciante que ele já experimentou. — Ciúmes não combina com você — ele murmurou, sem tirar os olhos de mim. — Tem razão — retruquei, ajeitando os óculos. — Eu nunca desperdiço energia com coisas descartáveis. As duas bufaram ao mesmo tempo, levantaram-se e foram para o convés de cima, provavelmente cochichar sobre mim. Vitória parcial: 1x0 para Agatha. Santi, ainda rindo, bateu palmas. — Você é insuportável, mas admito que sabe se defender. — Obrigada. É um dom. Mas o olhar de Dante continuava preso em mim. Silencioso. Intenso. Como se cada palavra minha fosse um desafio que ele jurava vencer mais cedo ou mais tarde. Pela primeira vez naquela viagem, percebi algo estranho, eu queria que ele tentasse.






