ISABELLA
Meu mundo sempre foi escuro antes do amanhecer. Não no sentido literal — sempre tivemos luzes acesas, salas protegidas, câmeras — mas no silêncio, nos segredos. Mamãe dizia que era para meu próprio bem, e talvez fosse. Cresci aprendendo que uma arma pode salvar ou tirar vidas, que números e sistemas são tão perigosos quanto balas. Que a fraqueza é fatal. Não lembro de ter sido criança de verdade. Meu corpo queimava com o arco e flecha grande demais para minhas mãos, com socos e chutes que me deixavam em carne viva, com dores de cabeça quando tentava aprender matemática, línguas ou sistemas de tecnologia. Mas eu amava-a, e ela me amava. Ela sempre cuidava de mim. Então, naquela madrugada, fui acordada pelo som de batidas na porta. Meu coração disparou, como sempre. — “Mamãe, tem alguém batendo na porta!” — sussurrei. Ela pegou a arma. Instinto. Reflexo. Treinamento. Eu me escondi, observando cada movimento. — “Sou eu. Riccardo.” Mamãe engoliu em silêncio, escondeu a arma nas costas e abriu a porta. Riccardo parecia desesperado — algo que ele só ficava quando a família estava em perigo. Eu sabia disso, porque mamãe me ensinou: “Observe, leia as pessoas.” — “Irmã, desculpa a hora, preciso de você!” — “Entre, o que aconteceu?” — respondeu mamãe, firme, controlada. Sempre atenta observando os perigos à sua volta. — “Alessandro foi perseguido. O carro capotou e, para despistar a gangue, ele entrou na floresta. Meus homens não conhecem este terreno. Você conhece, vive aqui há 16 anos.” Meus dedos se apertaram contra meu corpo. Vive aqui? Não, me escondo. Eu conhecia a floresta melhor do que qualquer um. Melhor até do que mamãe imaginava. — “Errado duas vezes. Não vivo aqui, me escondo! Viktor não pode saber da existência dela. E não sou eu quem conhece a floresta… é Isabella!” Senti o ar ficar pesado. Riccardo engoliu, tentando escolher as palavras certas. Ele sabia o que isso significava. — “Você sabe o que isso significa… a existência dela não pode…” — “Eu sei. Não pediria se não fosse importante, Donatella… é meu filho.” Mamãe olhou para ele, olhos duros, decididos, me defende: — “É minha filha.” Aquelas palavras soaram como um estalo no silêncio da noite. Eu, Isabella, pequena e quase invisível para o mundo, era a chave para algo maior do que eu poderia compreender. Alessandro estava em perigo, e meu padrinho, desesperado, estava ali porque sabia que a única capaz de lidar com aquilo era eu. O silêncio da madrugada era denso. Cada respiração parecia amplificada, cada sombra se movendo na parede da cabana lembrava que eu nunca poderia vacilar. Minha coluna ardia de treinos passados, os cortes nos meus braços e mãos ainda latejavam. Cada músculo parecia gritar: você não é mais criança, Isabella. Mas eu era. E, mesmo assim, tinha que ser melhor. Mamãe se virou para mim devagar, como se lutasse consigo mesma. O rosto duro de guerreira deu lugar, por um instante, àquele olhar que eu só via quando ela pensava que eu dormia. — Eu não queria que fosse, Isabella… — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro. — Mas o padrinho precisa. — Eu sei, mamãe — respondi, o estômago apertado. — Eu sou uma sombra. Ela respirou fundo, engolindo algo que não disse. Com um gesto firme, puxou meu capuz e o ajustou na minha cabeça. O tecido áspero tocou minha pele como uma armadura invisível. — Não tire o capuz por nada — ordenou. — Não mencione uma palavra que possa dar qualquer dica de quem você é. Os dedos dela tremeram quando tocaram minha face. Pequeno, mas perceptível. Ela raramente tremia. — É assim que vão encontrá-lo — continuou. — Ligue o GPS. Deixe que os homens do seu padrinho rastreiem o sinal. Não tente ser heroína, encontre ele, deixe-o em segurança e volte. Eu assenti. O treinamento falava mais alto, mas dentro de mim algo pesava. — Eu sei, mamãe. Eu sou uma sombra. — Repeti. Ela segurou meu rosto entre as mãos e me forçou a olhar nos olhos dela. E naquele instante, a guerreira sumiu. Ficou só a mãe. — Para o mundo, meu amor… você é a sombra. — Sua voz quebrou um pouco. — Mas para mim, você é a luz. A floresta não era escura apenas pelo céu fechado. Era escura porque cada sombra poderia matar, cada barulho podia ser armadilha. Meus pés afundavam na terra molhada, galhos chicoteavam meu rosto, e a dor nos ombros de tanto carregar o arco parecia uma lembrança cruel. O GPS indicava o ponto aproximado. Não havia tempo para hesitar. O primeiro inimigo surgiu. Flecha certeira. Silêncio absoluto. O segundo tentou cercar-me, mas meu corpo e mente, treinados até o limite, reagiram antes que ele pudesse pensar. Cada golpe, cada movimento, calculado com precisão mortal. A dor, o cansaço, tudo se dissolvia em eficiência. Os últimos inimigos foram derrubados com a mesma frieza. Não havia celebração. Apenas a missão. Coloquei o GPS camuflado em um tronco, pronto para ser rastreado pelos homens do padrinho. — “Isso vai levá-los até você,” sussurrei para Alessandro. — “Eles vão cuidar do resto.” Segurei seu braço e o guiei pela trilha principal, atenta a qualquer perigo. Deixando seguro próximo ao GPS. Cada passo era calculado. Cada respiração, controlada. A floresta parecia reconhecer que a sombra havia feito seu trabalho. --- O sol ainda não havia despontado. Observei à clareira onde os homens do meu padrinho se aproximavam. Alessandro estava seguro, sendo levado para um local protegido. Voltei para casa. Riccardo me recebeu com os olhos arregalados, um misto de alívio e orgulho. — “Isabella…” — disse, a voz baixa e firme — “você… conseguiu. Obrigado. Alessandro está seguro. Ele vai ficar bem.” Antes que qualquer palavra pudesse soar como reconhecimento pessoal, senti a mão de mamãe no meu ombro. Donatella estava rígida, quase como uma estátua viva, o olhar varrendo tudo ao redor antes de se fixar em mim. — “Não envolva mais minha filha nos erros de Alessandro.” — Sua voz foi firme, glacial. — “Não importa o que ele faça ou para onde vá, você não tocará minha Isabella.” Riccardo desviou o olhar, entendendo a intensidade daquela linha que ela traçava. Mamãe não disse mais nada. Apenas ajustou meu capuz. O mundo se tornou apenas nós duas novamente. Eu, sombra; ela, a guerreira que nunca desistia. Enquanto observava Alessandro sendo levado em segurança, senti algo claro: a vida que eu conhecia era cruel e brutal, mas sob a tutela de Donatella, eu sempre teria um escudo. E ali, na penumbra da manhã que nascia, eu sabia que, para o mundo, eu era a sombra perfeita. Mas para ela… eu continuaria sendo sua luz. ... Silêncio. A floresta parecia prender o fôlego. — “Mamãe…” — sussurrei, quebrando a tensão. — “Por que a gente vive se escondendo? Por que não podemos existir de verdade?” Ela respirou fundo antes de se virar. Por um instante, pensei que ela fosse me abraçar. Mas Donatella era feita de aço — e aço não cede facilmente. — “Porque o mundo não perdoa erros, Isabella.” — Sua voz era fria, calculada, mas o olhar… o olhar tremia. — “Você é a lembrança viva de uma traição entre impérios. Sua existência é uma ofensa a dois reinos. Viktor Rostov não pode saber. Nenhum deles pode.” — “Mas ele é meu pai…” — murmurei, e vi o olhar dela endurecer ainda mais. — “Ele é o homem que me amou e me destruiu. E se souber que você existe, vai tentar usá-la — ou matá-la — antes que o mundo descubra o que você representa.” Ela se aproximou, a mão fria sobre meu rosto quente. — “Você é metade Rússia, metade Itália. A união que nenhuma das duas máfias permitiria. Você é o elo, Isabella. E elos… são quebrados quando ameaçam o poder.” Eu engoli em seco. Quis dizer que não tinha medo, mas Donatella sempre via através de mim. — “Por isso, minha filha…” — a voz dela suavizou — “enquanto eu respirar, ninguém vai te encontrar. Você será a sombra da floresta, e eu serei a muralha que te protege.” Aquela foi a primeira vez que entendi o peso do nome que me deram. E também a primeira vez que percebi que o amor de uma mãe pode ser o segredo mais perigoso do mundo.