A chave emperrou antes de girar. Vivian respirou fundo e, com um empurrão, conseguiu abrir a porta da república. O cheiro de café requentado e esmalte recém-passado misturava-se no ar. Era cedo ainda, mas cada uma das meninas já se movimentava conforme seu próprio ritmo.
Ciça estava sentada à mesa da cozinha, livros abertos, o cabelo preso de qualquer jeito num coque que deixava escapar mechas castanhas. Tinha uma caneca na mão e a expressão concentrada. Quando viu Vivian, abriu um sorriso imediato.
— Até que enfim! Pensei que você ia direto pro hospital dormir.
Vivian largou a mochila no chão e se jogou numa das cadeiras. — Nem me fala, Ciça. Parece que o dia teve 48 horas.
Do quarto ao lado, Ana Paula cantarolava alto, testando tons diante do espelho. Trabalhava como recepcionista, mas sonhava com o teatro. O som da escova de cabelo batendo no armário se misturava à música do rádio.
Camila foi a última a aparecer, saindo do banheiro envolta em um roupão de seda vermelho. Maquiagem impecável às nove da manhã. Perfume doce demais para um dia comum. O salto que segurava na mão denunciava a noite anterior.
— Alguém tem aspirina? — perguntou, ajeitando o batom. — Ontem foi puxado.
Vivian trocou um olhar rápido com Ciça. As duas sabiam que “puxado” era a palavra que Camila usava para noites longas em lugares que preferia não explicar.
— Tem no armário — disse Ciça, sem levantar os olhos do caderno. — Mas pega só uma.
Camila riu, aquela risada calculada. — Relaxa, menina. Vou repor quando sair.
Vivian preferiu não comentar. Puxou a conta de luz da mochila e deixou sobre a mesa. — Chegou hoje cedo. Vence na sexta.
As três olharam o papel. Silêncio. Era sempre a mesma dança: salários curtos, bicos mal pagos, atrasos inevitáveis.
— Eu dou um jeito — disse Vivian, rápido demais, tentando evitar o peso do olhar das outras.
Ciça fechou o caderno. — Vivi, você não pode ficar assumindo tudo. Já não basta a faculdade, o estágio, a Mariana…
— Deixa, Ciça. — Vivian sorriu de canto. — Eu me viro. Sempre me viro.
Camila apoiou-se na pia, cruzando os braços. — Às vezes vocês complicam demais. Tem jeito de ganhar dinheiro sem se matar desse jeito, sabia?
Vivian ergueu os olhos, encarando-a. — E você sabe bem disso, né?
O silêncio que seguiu foi desconfortável. Camila apenas deu de ombros, como quem não se ofende. — Cada uma faz suas escolhas. Eu só digo que… tem portas que vocês nem imaginam.
Ciça foi quem cortou o clima. — E tem portas que não deveriam ser abertas.
A tensão se dissipou devagar, mas ficou no ar como fumaça. Vivian respirou fundo. Sabia que Camila não falava apenas por falar. As roupas caras, o celular novo, os perfumes importados não combinavam com a desculpa de “trabalhar como hostess em eventos”.
Quando as outras foram para seus quartos, Vivian ficou sozinha na cozinha. Abriu o caderno da faculdade, rabiscou tópicos para o seminário de Semiologia. Mas a mente estava longe: no hospital, na palavra do médico que ecoava como profecia — Não deixe a vida te convencer do contrário.
De repente, Ciça voltou. Sentou-se ao lado dela e falou baixo, como se dividisse um segredo. — Vivi, eu sei que você tá no limite. Mas não deixa a Camila envenenar tua cabeça. Você tem um dom. Não j**a fora.
Vivian olhou para a amiga e sorriu, cansada. — Obrigada, Ciça. Eu sei que você tá comigo.
O barulho da descarga no banheiro interrompeu a conversa. Camila surgiu logo depois, já pronta para sair, vestido justo, salto firme. Jogou um beijo no ar. — Meninas, eu volto só amanhã. Não esperem.
A porta bateu e o apartamento voltou a ser só silêncio, cadernos e respirações.
Vivian fechou os olhos por um instante. Entre a conta de luz, a doença da irmã e os sussurros de Camila, uma sensação incômoda crescia: talvez ela não conseguisse se virar sozinha por muito mais tempo.
Ciça tocou-lhe a mão. — Você não está sozinha, Vivi. Mesmo que o mundo tente te convencer do contrário.
Vivian respirou fundo. Queria acreditar. Queria muito acreditar.