O corredor do pronto-socorro parecia uma pista de aeroporto em miniatura: luzes fortes, passos apressados, vozes sobrepondo-se em instruções. Quando a ambulância parou sob a marquise, o corpo do homem do sedã — agora imobilizado, colar cervical, oxigênio — foi engolido por uma coreografia de jalecos. Vivian, a alguns quilômetros dali, ainda conduzia o carro rumo à capital, zelando para que Mariana não percebesse o tremor que teimava em voltar às mãos.
— Tô com frio, Vivi — murmurou a menina, a voz de quem acabara de acordar.
— A gente já tá chegando, amor. — Vivian aumentou um ponto o ar quente, depois sorriu. — Hoje você vai ser muito corajosa. E eu vou estar do teu lado.
Quando finalmente estacionou, a cidade já tinha acordado. O hospital de oncologia ficava a poucos quarteirões do pronto-socorro onde levaram o homem. Vivian não sabia — e talvez fosse melhor assim. Ela caminhou apressada com Mariana pela calçada, a manta azul sobre os ombros da menina, a ficha de encaminhamento dobrada na bolsa.
No balcão, a recepcionista pegou o documento, digitou com unhas pintadas.
— Nome completo da paciente?
— Mariana Oliveira.
— Acompanhante?
— Vivian… Vivian Oliveira. — O som do próprio nome saiu baixo, como se pedisse licença ao mundo.
A recepcionista imprimiu etiquetas, explicou o caminho, carimbou papéis. Mariana apertou a mão da irmã e olhou em volta como quem entra num país estrangeiro: cadeiras em filas, crianças com bonés coloridos, pais silenciosos, o cheiro afetivo do álcool em gel.
— Hoje é só coleta, Mari. Vai ser rápido — disse Vivian, ainda que soubesse das tentativas múltiplas de veia, dos hematomas roxos que insistiam em florescer no braço da irmã.
No outro prédio, o homem do sedã — Eduardo, descobririam — atravessava o corredor suspenso entre a anestesia e o mundo. Vozes eram marés: sobe e desce, próximas e longe. Fratura? TCE leve? Saturando bem. Palavras pescadas por uma rede de consciência que rasgava vez ou outra. Quando a maca parou numa sala de observação, ele tentou abrir os olhos. Conseguiu a metade de um gesto.
— Senhor Eduardo, vamos manter o senhor em observação, tá? — disse uma enfermeira, checando os monitores. — O senhor deu sorte.
Sorte. A palavra puxou imagens. A curva, a neblina, o ferro. E, no centro, uma cor — cobre — e um par de olhos quentes. Ele não sabia ainda como chamar aquilo, mas o corpo lembrava: mãos pequenas, firmes, segurando sua vida como se fosse coisa simples. Tentou falar. A garganta era uma estrada áspera.
— A… ru… — tossiu.
— Água? — a enfermeira aproximou um canudinho. — Devagar.
Ele bebeu dois goles e recostou. O mundo oscilou menos. A enfermeira anotou algo e saiu, prometendo voltar com o médico. Eduardo fechou os olhos por um segundo e viu, como quem vê por dentro, a ruiva na beira do asfalto. Quem era? Uma pergunta sem sobrenome.
No ambulatório de oncologia, a técnica de enfermagem sorriu para Mariana.
— Bom dia, guerreira. Vamos procurar uma veia bem boazinha, né?
Mariana assentiu, uma bravura miúda, e estendeu o braço. Vivian sentou ao lado, arrumou a manta, passou a mão nos cabelos da irmã como se alisasse um pássaro.
— Você viu o que aconteceu na estrada? — a técnica puxou conversa, distraindo. — O rádio falou de um acidente por causa da neblina.
Vivian respirou com cuidado.
— Vi… É… a gente estava perto. — E calou. Não contou do sangue no casaco, do peso da cabeça dele nas suas pernas. Guardou aquilo onde guardava as coisas que ainda não sabia nomear.
A agulha entrou de primeira. Mariana mal piscou. A técnica sorriu, satisfeita.
— Ótima veia, hein? — Ela etiquetou os tubos. — Levo lá e vocês aguardam o chamado no saguão. Deve sair rápido hoje.
No retorno ao corredor, o telefone de Vivian vibrou. Marlene.
— Chegaram bem, filha?
— Chegamos, tia. A coleta já foi, agora é esperar o retorno com o médico. — Tentou manter a voz estável. — Eu te aviso qualquer coisa.
— Tá bom. Deus acompanha — disse Marlene, aquela fé que costurava o dia a dia.
Vivian desligou e, por um momento, sentiu o cansaço como um lençol pesado. A mente saltou para a aula que perderia naquela manhã — Semiologia II — e para o seminário que precisava apresentar em dupla na semana seguinte. A faculdade de enfermagem tinha virado um quebra-cabeça montado à noite, entre ônibus e plantões de estágio, com peças que teimavam em faltar.
— Vivi? — Mariana puxou-lhe a manga. — Depois do médico, a gente pode tomar chocolate quente?
— Pode. — Sorriu. — Com chantili.
Enquanto isso, no outro hospital, um médico de plantão fazia perguntas a Eduardo, checando reflexos, pupilas, dor.
— O senhor lembra do acidente?
— Fragmentos — ele respondeu, a voz ainda áspera. — Lembro… da curva. Da… — e procurou a palavra certa. Não achou. — De alguém.
O médico anotou.
— A equipe do resgate registrou que uma mulher prestou primeiros socorros. Provavelmente isso manteve o senhor consciente e controlou o sangramento até a nossa chegada.
Mulher. Não era suficiente. Eduardo fechou os olhos. A imagem respondeu melhor que a memória: a ruiva, o casaco comprimindo a ferida, a voz contando sua respiração. Ele quis perguntar o nome, mas percebeu a própria urgência e se calou por pudor, como quem teme revelar demais um segredo íntimo.
— Vamos fazer mais uma bateria de exames, mas o quadro é animador, juiz Eduardo — concluiu o médico.
A palavra “juiz” ricocheteou no ar como uma moedinha. Uma técnica que cruzava a sala endireitou a postura; um segurança do hospital, avisado sabe-se como, pairou pela porta. Aquilo abria espaço para sussurros: autoridade, audiência marcada, imprensa se souber. Eduardo ignorou. Tentou dormir um pouco, mas o sono era feito de retalhos.
Entre um retalho e outro, o destino mexeu os fios.
No ambulatório, uma funcionária surgiu no corredor com um caixote de arquivos. Ao tropeçar no carrinho, uma pasta mergulhou no chão; etiquetas se espalharam como pétalas. Vivian, por reflexo, abaixou e ajudou a recolher.
— Ai, obrigada! — a mulher riu do próprio desastre. — É um inferninho de manhã.
Vivian entregava as etiquetas quando ouviu, a poucos metros, a recepcionista chamar em voz clara:
— VIVIAN OLIVEIRA! — ecoou pelo corredor branco.
A mulher dos arquivos repetiu, rindo:
— Vivian Oliveira, tá te chamando. Corre lá.
Vivian agradeceu com um gesto e caminhou com Mariana até a porta do consultório. O nome dela ficou vibrando no ar, como as ondas de um sino.
Três andares acima, num corredor que desembocava na sala de observação, um técnico empurrava um carrinho de medicação com o rádio ligado na cintura. Um chiado surgiu, seguido por interferência da recepção do hospital de oncologia — prédios conectados pela rede interna. Duas palavras vazaram nítidas pelo chiado e atravessaram a porta semiaberta onde Eduardo descansava:
— … VIVIAN OLIVEIRA… consultório dois…
O som, que para qualquer um seria ruído, para ele foi farol. Eduardo abriu os olhos de repente, como se tivesse escutado o próprio nome.
— O que foi? — perguntou a enfermeira, voltando à sala.
— O… nome. — Ele tocou a têmpora, tentando ordenar. — Vivian. Eu… preciso falar com ela.
— Com quem? — a enfermeira franziu a testa.
— A mulher que me ajudou — disse, e percebeu o absurdo da certeza. — Eu… acho que é Vivian.
A enfermeira sorriu com delicadeza burocrática.
— Tem muita Vivian no mundo, doutor. — Usou o título errado, por hábito. — Descansa um pouco. Depois a gente vê isso.
Ele fechou os olhos, mas a palavra não se apagou. VIVIAN. Testou a combinação no pensamento, como quem prova uma chave numa fechadura.
No consultório, o hematologista folheava os exames antigos de Mariana.
— Houve queda no hemograma, mas nada que nos tire da nossa estratégia. Vamos ajustar a medicação e agendar a próxima avaliação. — Explicou, desenhando num bloco, transformando medo em planilha.
Vivian fez perguntas técnicas com a naturalidade de quem já fala aquele idioma. O médico notou.
— Você é da área?
— Enfermagem. — Ela sorriu sem dentes. — Ainda cursando.
— Vai ser boa. — Ele disse sem amaciar, como quem reconhece calibre. — Só não deixe a vida te convencer do contrário.
A frase ficou pendurada, como um quadro torto. Vivian pensou na conta do mês, no ônibus, no estágio, no que o futuro cobrava à vista. Não deixa a vida te convencer do contrário. Por um segundo, desejou que aquilo fosse uma profecia.
Saíram do consultório com receitas e encaminhamentos, e a rotina puxou de volta: farmácia, autorização, retorno. Mariana, mais leve por ter sobrevivido a mais uma manhã, apontou para a lanchonete.
— O chocolate quente?
— O prometido é dívida. — Vivian riu, cansada.
Na lanchonete do hospital, o vapor doce subiu das xícaras, e por um minuto as duas foram apenas irmãs num café da manhã simples. Vivian pegou o celular, digitou uma mensagem curta para Marlene: Consultas ok. Depois falo. Em seguida, um nome piscou nas conversas: Ciça. Duas mensagens antigas fixadas no topo — Você não tá sozinha; me liga quando puder — lembraram que, no fim do dia, ela ainda voltaria à república de Sant’Ana do Vale, às louças na pia, aos livros de Semiologia.
— Vamos? — perguntou, depois do último gole.
No prédio ao lado, Eduardo pediu a um residente — com uma autoridade que não vinha do crachá, mas do tom — que verificasse se havia alguma “Vivian” no hospital de oncologia. O rapaz hesitou, meio rindo, mas saiu. Voltou quinze minutos depois, encolhendo os ombros.
— Doutor… tem cinco Vivians nas fichas da manhã. Nenhuma com sobrenome.
Eduardo fechou os olhos. A palavra insistia em arder na boca: VIVIAN. Ele tentou juntá-la a outra — Oliveira — mas essa ainda não estava disponível na gaveta certa da memória. O corpo cedeu a um sono curto, finalmente.
No térreo, de mãos dadas, Vivian e Mariana atravessaram as portas automáticas. O ar frio da manhã as recebeu como quem recebe gente da casa. Vivian olhou instintivamente para o outro prédio, sem saber por quê. Um movimento de seguranças, um entra-e-sai de jalecos, um burburinho diferente — nada que fizesse sentido para quem não tinha as chaves daquela história.
Sentiu, então, um arrepio leve. Não de frio — de intuição. Apertou a mão da irmã.
— Vem. A gente ainda tem um dia inteiro pela frente.
E foi embora sem saber que, alguns andares acima, um homem abria os olhos e repetia em silêncio o nome dela como um juramento: VIVIAN.