A neblina começava a se desfazer em fiapos quando o relógio do painel marcou cinco e oito. A estrada que deixava Sant’Ana do Vale rumo à capital parecia um corredor suspenso no branco. Vivian manteve os faróis baixos, as mãos firmes no volante do carro simples da tia Marlene. À direita, os cafezais sumiam em véus, como se alguém tivesse apagado metade do mundo.
No banco do passageiro, Mariana dormia encolhida sob uma manta azul, a testa encostada no vidro frio. Aos treze anos, trazia no rosto pálido aquela serenidade que dói: um descanso leve entre consultas, coletas e retornos que se amontoavam como contas vencidas. Vivian ajeitou a manta da irmã, apertou o cinto e respirou fundo. A lembrança da planilha de gastos brilhou por um segundo: remédios, transporte, exames, o leite de ontem. Fechou a conta mental à força.
— Falta pouco, Mari — sussurrou, sem esperar resposta.
Ela estava no quinto semestre de enfermagem. Não sabia tudo, longe disso, mas os conteúdos de primeiros socorros, trauma e suporte básico giravam na cabeça como litanias úteis. Repetiu mentalmente: segurança da cena, vias aéreas, sangramento, consciência. Não porque esperasse algo — mas porque, naquela hora da manhã, a estrada impunha respeito.
Foi quando dois círculos de luz rasgaram a neblina pelo retrovisor, se aproximando rápidos demais para aquela visibilidade. Um sedã preto, carro de gente apressada, colou na traseira e, num gesto impaciente, deslocou-se para a faixa da esquerda. Vivian diminuiu um pouco, cedendo espaço. O sedã avançou e desapareceu um palmo adiante… até que o mundo virou som.
O grito dos pneus no asfalto úmido, a patinada longa, o estalo de metal contra concreto. O carro negro girou uma vez, outra, como uma moeda em câmera lenta, e cravou o nariz na mureta. Faíscas. Um espelho estourou em cacos de luz. Depois, silêncio: apenas o tique-taque aflito da seta do acidentado, laranja cortando o branco.
Mariana sobressaltou no banco.
— Vivi…?
— Fica aqui, amor. Trava as portas. — A voz de Vivian saiu sem tremor. O medo ficou do lado de fora.
Ela encostou no acostamento, puxou o pisca-alerta, conferiu o tráfego que não se via e desceu. O ar frio mordeu a pele, a neblina grudou nos fios ruivos que escapavam do elástico. Calculou a distância, a margem segura do asfalto, o risco de outro carro surgir. Aquelas frases que ouvia em aula — “não vire vítima” — riscaram rápido na mente. A cena parecia relativamente segura. Correu.
O sedã negro estava atravessado, dianteira retorcida, a coluna A amassada. O vidro do motorista se partira em linhas de gelo. Dentro, um homem com camisa social escura e gravata desalinhada jazia com a testa colada ao volante, sangue desenhando uma trilha em diagonal até a barba por fazer. O peito subia e descia num ritmo estranho, como quem luta contra um fundo de piscina.
— Senhor? — Vivian tocou o ombro dele, medindo força. — Consegue me ouvir?
Um gemido baixo. As pálpebras tremeram, pesadas. Os olhos abriram um facho, turvos, mas vivos. Buscaram um ponto e pararam nos dela. Por um instante, o mundo estreitou: dois olhares presos na mesma borda. Vivian sentiu algo apertar por dentro — não piedade apenas, nem adrenalina pura; um instinto (quase físico) de manter aquele homem no lado certo da linha.
“Segurança da cena. Via aérea. Sangramento.” A engrenagem do aprendizado girou. Ela puxou a porta do motorista; presa. Deu a volta em dois passos e, pelo lado do passageiro, alcançou a tranca, destravou, voltou. A porta abriu um palmo com um rangido. Vivian apoiou o joelho no assoalho, puxou o banco para trás, estabilizou a cabeça dele com o antebraço.
— Fica comigo, tá? — A voz saiu firme, quase doce. — Olha pra mim.
Tirou o casaco e o dobrou numa compressa improvisada, pressionando a lateral da testa. O sangue quente manchou o tecido, escorreu pela sua mão. Ela ajustou a inclinação do banco, manteve o pescoço alinhado com cuidado para não piorar nada que não pudesse ver. Sentiu a respiração dele falhar — uma pausa longa demais, então um retorno áspero.
— Isso… inspira… solta devagar. — Quantas vezes já havia repetido aquele compasso em aula? — Isso. Fica aqui comigo.
Ele tentou falar. Um som rouco, uma sílaba que não nasceu. Os olhos, no entanto, resistiam: escuros, fundos, pareciam apreender a luz mel dos olhos dela. Vivian percebeu, com certo espanto íntimo, a beleza objetiva daquele rosto — o desenho do maxilar, o nariz quase aristocrático — e, ainda assim, não foi beleza o que a mobilizou; foi a teimosia de mantê-lo desperto.
— Tem alguém no carro? — gritou por instinto, checando o banco de trás. Vazio. O cheiro de gasolina se misturava ao de ferro e serração.
Lembrou da irmã.
— Mariana! — virou de leve o rosto, sem tirar as mãos dele — Tá tudo bem! Fica aí no carro! Já volto!
— Tá! — a menina respondeu ao longe, a voz presa em medo e confiança.
A neblina recuou dois metros, como se o vento abrisse uma janela breve. Deu para ver as marcas de frenagem, riscos pretos desenhando a trajetória. Deu para ouvir, ao longe, o primeiro sussurro de sirene — tão baixo que talvez fosse apenas desejo. Vivian não esperou confirmação: manteve a pressão contínua na ferida, o apoio da cabeça no casaco, os comandos calmos.
— Qual seu nome? — tentou de novo, mais por mantê-lo aqui do que por saber.
Os lábios formaram algo parecido com “Edu…”, e morreram no ar. A mão dele, trêmula, subiu um pouco, procurando ancoragem. Ela ofereceu a sua. Ele apertou, fraco, mas presente. O toque era quente, insistente, e dizia o que a boca não podia.
Os minutos se alongaram num elástico. O frio subia pelos joelhos de Vivian, mas ela não sentiu. Alguns carros passaram devagar, vultos curiosos na neblina. Um motorista buzinou ao perceber o acidente; outro reduziu, ligou o pisca, mas seguiu adiante quando viu que alguém já prestava socorro.
A sirene, enfim, virou certeza. Cresceu quebrando o branco, depois luzes vermelhas e azuis mancharam a manhã pálida. Dois paramédicos saltaram da ambulância, um terceiro puxou a maca. Uma mulher com jaleco se agachou ao lado de Vivian, avaliou rápido.
— Você fez compressa, manteve alinhado e consciente? — perguntou, registrando com o olhar.
— Tentei. — Vivian engoliu o próprio tremor. — Ele teve pausa respiratória curta, mas voltou.
O paramédico tocou o pulso do homem, mediu o tempo com os olhos.
— Boa. — E, num aparte para o colega: — Se não fosse o primeiro atendimento, ele não chegava vivo.
“Não chegava vivo.” A frase entrou e ficou.
— Vamos imobilizar e tirar, na minha contagem — orientou a profissional. — Você segura a cabeça até eu assumir?
— Seguro.
A troca foi limpa, precisa. Colar cervical, tábua, cintas. O corpo dele deixou o colo de Vivian, e o vazio que ficou pesou mais do que ela esperava. O homem foi elevado, deitado, conectado a oxigênio. Um dos socorristas pediu documentos; encontraram a carteira no bolso interno do paletó. O nome brilhou em plástico, mas ninguém o disse em voz alta naquele momento. (O peso desse nome viria depois.)
— Querida, você está bem? — a paramédica tocou o ombro de Vivian.
Ela olhou as mãos vermelhas, o casaco arruinado, o elástico já vencido deixando mechas coladas à pele. Percebeu que tremia — agora, quando já podia. Assentiu.
— Tô. A minha irmã está ali no carro. Eu… preciso levá-la pra um exame na capital.
— Entendo. Obrigada pelo que fez. — A mulher esboçou um sorriso sincero. — Foi essencial.
A maca deslizou para dentro da ambulância. Antes que a porta fechasse, os olhos do homem buscaram de novo o lado de fora como quem procura um farol. Encontraram Vivian na beira do asfalto, as mãos ainda erguendo um gesto automático de “vai dar tudo certo”. Ele a viu — não como se reconhecesse uma salvadora, nem como se admirasse uma mulher bonita (embora fosse inevitável reparar nos fios de cobre e nos olhos quentes); viu como quem se agarra à última imagem nítida antes do escuro. A porta fechou.
O ruído da sirene se afastou, engolido pela estrada. A neblina retomou seu lugar, como se nada tivesse acontecido.
Vivian ficou alguns segundos quieta, ouvindo o próprio coração reaprender o compasso. Quando o silêncio voltou a ser apenas silêncio, correu até o carro. Mariana a observava com olhos muito abertos.
— Você salvou ele, Vivi?
Ela respirou fundo, tentou sorrir.
— Eu só fiz o que sabia. — E ligou o motor. — Vamos, que seu exame não espera.
À medida que o carro retomava o caminho, Sant’Ana do Vale ficou para trás como um retrato emoldurado de infância. A capital os chamava com seus prédios, suas salas claras de hospital, suas máquinas que prometiam respostas. Vivian enxugou as mãos com um lenço, olhou mais uma vez o retrovisor. Viu o lugar do acidente se dissolver no branco.
Não sabia o nome do homem, nem o peso que ele carregava no mundo. Sabia, apenas, que o segurara no limiar por tempo suficiente para que a luz voltasse a entrar. E que alguma coisa se deslocara dentro dela — um eixo, talvez. Como se a vida tivesse sussurrado uma promessa que ela ainda não era capaz de traduzir.
Naquele amanhecer, um ano antes de tudo, a estrada juntou dois destinos sem pedir licença. E, enquanto a cidade grande se aproximava, a ruiva de olhos mel dirigiu em silêncio, ignorando o fato de que um par de olhos escuros, dentro de uma ambulância, tentava se manter acordado apenas para não perder de vista a mulher que, por alguns minutos, tinha sido o seu mundo inteiro.