A porta da sala de reuniões se fechou atrás de mim com um clique abafado. O som deveria ter me trazido alívio — mais um compromisso encerrado com sucesso — mas tudo o que senti foi o peso crescente do cansaço. Passei a mão pelos cabelos, desfazendo o nó da gravata, e fui direto para o corredor que levava à minha sala.— Senhor Navarro? — A voz de Mariana, uma das assistentes, me interceptou antes que eu girasse a maçaneta. — Desculpe interromper, mas... a babá da sua filha está na recepção.Parei no mesmo instante.— Isabella? — perguntei, sentindo um frio súbito percorrer minha espinha. — Aconteceu alguma coisa com Giulia?— Não, senhor... Pelo menos, creio que não. Tentei dizer que ela poderia voltar mais tarde, mas ela insistiu. Está bastante... abalada.Não hesitei. Meu corpo agiu antes que minha mente acompanhasse.— Mande-a subir. Agora. — Entrei na sala, a adrenalina disparando no peito.Tentei manter a calma enquanto me dirigia à janela, mas não consegui. Algo estava errado. M
O restaurante era aconchegante, de tijolinhos aparentes e com mesas de madeira rústica. Luzes âmbar pendiam do teto como vaga-lumes imóveis, deixando tudo com um ar quase mágico. Miguel me guiou até a mesa, com a mão levemente em minhas costas. Giulia estava com Carmen por algumas horas, o que nos dava um raro tempo a sós — mesmo que fosse só para almoçar.— Esse era o restaurante preferido da minha avó — ele disse, já se acomodando. — A comida daqui é tão boa quanto a dela, o que é dizer muito.Sorri, ainda sentindo o gosto amargo da manhã, mas me esforçando para mergulhar naquele novo ambiente, mais leve, mais simples.— Ela cozinhava bem? — perguntei, tentando puxar conversa.— Fazia um cocido andaluz de fazer chorar.— Então eu estou no lugar certo — brinquei.Ele sorriu, aquele sorriso que fazia o rosto parecer menos cansado e os olhos menos solitários. Passamos um tempo conversando sobre pratos típicos, viagens, e até rimos juntos de uma história em que ele tentava cozinhar par
A casa estava silenciosa, como se soubesse que eu precisava de um pouco de paz. Giulia já tinha subido para o quarto com Isabella, e eu fiquei alguns minutos parado na sala, com as chaves ainda na mão, olhando para o nada. A bolsa da Isa estava encostada no sofá, a de Giulia no chão, com um dos brinquedos escapando por entre o zíper. Um cenário normal. Familiar. Mas havia algo em mim que não era.Sentei-me na poltrona perto da janela. A luz do fim da tarde pintava a sala com tons dourados e quentes. Fechei os olhos e deixei a cabeça tombar para trás. O cheiro da comida ainda estava no ar — um resquício do restaurante em que estivemos mais cedo. Tinha sido um bom almoço. Giulia riu, Isa se encantou com as histórias que contei da minha avó... e eu me peguei observando Isa mais do que deveria. N
Acordei antes do despertador.O céu de Sevilha ainda estava num tom pálido, misturado entre cinza e azul, e a luz fraca que entrava pelas frestas da cortina deixava o quarto com uma tranquilidade adormecida. Giulia dormia no quarto ao lado, respirando devagar como quem não tem pressa de acordar para o mundo.Mas eu já estava desperta — e inquieta.A noite anterior parecia ter deixado uma marca em mim. As palavras de Miguel, a forma como ele me ouviu, os olhos atentos, sem julgamento. E, principalmente, aquele último instante antes da despedida. Aquele quase toque. O silêncio cheio de tudo que não dissemos.Me vesti devagar e fui até o quarto de Giulia. Ela abriu os olhos assi
Giulia estava deitada de bruços no tapete da sala, desenhando com canetinhas espalhadas por toda parte. O sol da tarde atravessava as cortinas brancas, projetando sombras suaves nas paredes, e por um momento, tudo parecia tranquilo. Tão tranquilo quanto minha vida conseguia ser ultimamente.Me sentei no sofá, observando os movimentos pequenos e concentrados da minha filha. Ela mordia a ponta da língua ao tentar desenhar um coração perfeito, e achei aquilo absurdamente bonito. Delicado. Quase frágil.— Papai? — ela me chamou sem levantar o rosto.— Hum? — respondi, já sentindo que vinha pergunta difícil. Ela sempre tinha uma dessas guardadas.—
O abraço se desfez devagar, mas Miguel não me soltou por completo. Seus dedos ainda estavam presos às minhas costas, como se temesse que eu fosse desaparecer se me afastasse demais. Quando nossos olhos se encontraram, aquele mesmo calor que eu vinha evitando há semanas voltou a queimar na minha garganta.— Você vai me beijar? — a pergunta saiu baixa, quase um desafio.Ele não hesitou.— Sim.E então, seus lábios encontraram os meus. O primeiro toque foi suave, quase hesitante, como se ele ainda duvidasse que tinha permissão para estar ali. Mas quando eu respondi ao beijo, puxando-o mais perto pelas laterais da sua camisa, algo se quebrou dentro dele.Miguel gemeu contra
Capítulo – MiguelO cheiro de café fresco me guiou até a cozinha antes mesmo que eu abrisse totalmente os olhos. Ainda meio zonzo — mas num bom sentido, aquele tipo de exaustão que só vem depois de uma noite intensa —, desci as escadas com um sorriso idiota no rosto.Não era o tipo de homem que sorria sem motivo. Mas hoje... bem, hoje eu tinha um motivo muito bom.Isa.Meus pés mal tocaram o último degrau e, quando me aproximei da cozinha, o som de vozes me alcançou.— Não, Giulia, assim não, amor... senão vai cair tudo da colher. Devagar... Isso! Viu como você consegue? — A voz de Isa era suave, paciente.Me apoiei no batente da porta por um segundo, só observando. Isa estava sentada ao lado de Giulia, ajudando minha filha a tomar iogurte de uma tigela com desenhos de unicórnio. As duas riam. Giulia com a boca manchada de morango. Isa com o cabelo preso num coque desajeitado, vestindo uma camiseta larga — uma das minhas, percebi com uma pontada de satisfação — e uma calça de moletom.
O sol de Sevilha já começava a aquecer as ruas de pedra quando peguei a mãozinha de Giulia e a conduzi para fora do carro. Ela saltitava ao meu lado, o vestido leve balançando, o sorriso iluminando o mundo como só ela sabia fazer.Decidi que hoje seria um dia só nosso. Precisávamos disso — eu precisava disso.— Onde a gente vai, papai? — ela perguntou, olhando para cima com os olhos curiosos.Sorri, apertando seus dedos pequenos entre os meus.— Vamos tomar café naquela cafeteria que você gosta. A que tem churros.Ela soltou uma risadinha animada e correu na frente, me puxando pela mão. O cheiro de açúcar e café recém-passado preencheu o ar assim que empurramos a porta de vidro.Sentamo-nos em uma mesinha perto da janela, e logo uma moça simpática veio nos atender. Pedi um café forte para mim, chocolate quente para Giulia e, claro, uma porção generosa de churros.Enquanto esperávamos, observei minha filha apoiando o queixo nas mãos, olhando as pessoas passando lá fora. Tão pequena, tã