Mundo de ficçãoIniciar sessãoPov - Arabella Whitmore
Um peso incômodo saiu das minhas costas quando, num dia qualquer, Helena alegou que faria a coisa certa.
Eu era uma péssima mentirosa, e pior ainda em fingir que estava tudo bem quando não estava. Por isso, não estava sabendo ficar na presença dos nossos pais sem deixar evidente que algo estava errado. Uma sensação amarga me apunhalava toda vez que lembrava no que minha irmã havia se metido, e eu tinha que fingir para eles que, pela primeira vez, Helena não havia aprontado em uma de suas viagens — porque, sim, isso era algo corriqueiro.
Mas o peso de todo o seu segredo aliviou no instante em que ela dissera que iria até Dubai para terminar com seu noivo.
Não com firmeza absoluta, mas com uma convicção cansada que soara mais madura do que qualquer entusiasmo impulsivo. Tinha falado da passagem comprada para dali a alguns dias, da necessidade de resolver tudo pessoalmente, de encerrar aquilo sem transferir o peso para mais ninguém — no caso, eu, como sempre.
— Eu vou fazer a coisa certa, Bella — dissera, sentada na ponta da minha cama naquela noite. — Mesmo que doa.
Eu quis acreditar. Precisava acreditar.
Passei os dias seguintes repetindo para mim mesma que aquele problema não era meu. Que minha função como irmã tinha limites. Que apoiar não significava substituir. E, ainda assim, era impossível ignorar o quanto Helena parecia se desintegrar à medida que a data da viagem se aproximava.
Ela falava menos. Dormia mal. Caminhava pela casa como quem contava os passos até um precipício invisível.
— Está tudo bem — dizia sempre que eu perguntava. — Só ansiedade.
Mas eu a conhecia bem demais para não perceber o medo por trás daquelas respostas rápidas. Não era apenas o noivado. Era a consciência tardia de que algumas decisões não permitem recuos limpos.
Na tarde anterior, Helena entrou no meu quarto sem bater. Eu estava sentada à escrivaninha, revisando um relatório que não exigia urgência alguma.
— Você acha que ele vai me odiar? — perguntou, do nada.
Levantei os olhos devagar.
— Acho que ele vai se sentir ferido — respondi com honestidade. — Mas isso não significa ódio.
Ela assentiu, mas não pareceu convencida.
— E se ele achar que eu o usei? — insistiu. — Que aceitei tudo só pelo que ele representa?
— Helena — suspirei. — Você não fez isso por interesse. Fez porque se deixou levar. Existe uma diferença.
— Existe para você — murmurou. — Não sei se existe para ele.
Aproximei-me e segurei suas mãos.
— Você vai explicar. Com calma. Com respeito. É isso que importa.
Ela me encarou por um instante longo demais.
— Se eu fraquejar... — começou, mas não concluiu.
— Você não vai — respondi, mais convicta do que me sentia. — E, se sentir que vai, você se lembra do motivo pelo qual decidiu ir.
Ela sorriu, fraco.
— Você sempre acredita mais em mim do que eu mesma.
Naquela noite, Helena saiu.
Disse que precisava espairecer. Caminhar. Pensar longe das paredes da casa e das expectativas que pareciam se fechar sobre ela. Eu não questionei. Não era raro que ela precisasse de ar quando se sentia pressionada.
Fui dormir cedo.
O telefone tocou pouco depois da meia-noite.
Ainda hoje, lembro-me da sensação exata ao ver o nome desconhecido na tela. Algo frio se instalando no peito antes mesmo de eu atender.
— Senhorita Whitmore? — a voz era formal demais para aquele horário. — Aqui é do hospital St. Mary’s. Sua irmã sofreu um acidente.
O resto da frase chegou até mim como ruído.
Não foi grave.
Essa informação veio cedo demais, quase como um pedido de desculpas antecipado por me arrancarem da cama no meio da noite. Mas o medo não funcionava assim. Ele não se dissipava com lógica.
Quando cheguei ao hospital, Helena já estava acordada. Pálida. Um curativo discreto na testa. O braço imobilizado.
Parecia menor.
— Eu sinto muito por fazer você vir, não queria tirar nossos pais da cama no meio da noite com a notícia do meu acidente — disse assim que me viu, o rosto numa expressão estranha.
Não era dor física que havia ali. Era outra coisa. Culpa, talvez. Ou algo mais calculado.
— O que aconteceu? — perguntei, segurando sua mão.
— Um táxi — respondeu. — Estava distraída. Não vi o carro vindo.
Fechei os olhos por um instante, tentando controlar a respiração.
— Você podia ter se machucado muito mais — murmurei.
— Eu sei.
Houve uma quietude desconfortável.
— Bella... — chamou, hesitante. — Os médicos disseram que vou precisar ficar em observação por alguns dias. E depois... repouso.
E tão logo disse isso, sua expressão esquisita passou a fazer sentido. Meu coração afundou antes mesmo que ela terminasse.
— Sua viagem — completei.
Ela assentiu, os olhos marejados.
— Eu não posso ir.
A frase caiu entre nós com um peso quase físico.
— Helena, isso pode esperar — tentei dizer. — Você precisa se recuperar.
— Não pode — rebateu, com uma urgência que me alarmou. — Você não entende. Ele está esperando. Tudo está... andando.
— Então você fala com ele. Explica. — Respirei fundo. — Você pode adiar.
— Não é assim que funciona — repetiu, mais desesperada do que nunca. — Cada dia de silêncio só piora tudo.
Havia algo diferente naquela insistência. Um desespero que não parecia nascer apenas do acidente.
— Você disse que iria — lembrei. — Que faria a coisa certa.
— E eu vou — respondeu, apertando minha mão. — Só não do jeito que planejei.
Meu estômago se contraiu.
— Bella, eu não estaria te pedindo isso se tivesse outra saída — continuou. — Mas agora não tenho. Eu não posso ir. E se eu não for... Não terá mais volta! Ele já marcou a data da cerimônia, Bella.
Fechei os olhos, sem saber o que sentir ao certo. Mas, com certeza, a coisa em meu peito apertou um pouco mais.
— Você está me pedindo para ir no seu lugar — disse, enfim, colocando em palavras aquilo que já estava implícito.
Ela não negou.
— Só para conversar — apressou-se. — Para ganhar tempo. Para explicar que houve um imprevisto sério. Que eu preciso de alguns dias.
— E depois?
— Você mesma disse que ele parecia razoável — interrompeu. — Que entenderia.
A lógica era torta. Eu sabia. Mas estava exausta demais para combatê-la com a clareza que merecia.
— E se ele não entender? — questionei.
— Então pelo menos não fui eu a decepcioná-lo pessoalmente — disse, com a voz embargada. — Não agora. Não assim.
Ali, no quarto de hospital, com o cheiro de antisséptico e o medo ainda fresco em mim, algo se rompeu.
Não foi uma decisão racional. Foi emocional. Instintiva. O reflexo antigo de quem sempre intervinha antes que tudo desmoronasse.
— Você tem certeza de que é isso que quer? — perguntei, numa última tentativa de resistência.
— Eu tenho certeza de que não aguento mais — respondeu. — E de que você é a única pessoa que pode evitar que isso vire algo muito maior.
Eu queria dizer não.
Queria lembrá-la de que aquilo não era certo. De que eu não tinha criado aquele problema. De que assumir aquele papel me colocaria numa posição injusta. Pois, seja lá como o noivo dela reagiria com a notícia do rompimento, quem sofreria as consequências seria eu.
Mas tudo o que vi foi minha irmã ferida, desesperada e incapaz de sustentar o próprio caos.
E, como sempre, eu cedi.
A viagem aconteceu rápido demais depois disso.
Arrumei a mala como quem cumpria uma tarefa desagradável, mas necessária. Não contei aos meus pais todos os detalhes. Apenas o suficiente para justificar uma partida repentina.
No carro a caminho do aeroporto, observei Londres passar pela janela com uma estranheza nova. Como se eu estivesse deixando algo para trás sem saber quando — ou se — voltaria a ser a mesma.
No avião, as lembranças se misturavam.
A conversa na cozinha.
A promessa de Helena.
O telefone tocando de madrugada.
O quarto de hospital.
O pedido que jamais deveria ter sido feito.
Um rosto que não deveria ter se fixado em minha mente desde que o vi.
Fechei os olhos, tentando organizar os pensamentos.
Eu não estava indo por vontade.
Estava indo porque alguém precisava sustentar uma decisão que Helena já não conseguia carregar.
E, enquanto o avião cortava o céu em direção a um destino que eu jamais escolhera, uma certeza inquietante se instalava em mim:
Aquela viagem não encerraria nada.
Ela apenas mudaria o lugar onde tudo começaria a ruir.







