Elara
O dia amanheceu com o vilarejo em alvoroço. Eu ainda estava com os olhos pesados de uma noite mal dormida, mas bastou colocar os pés na rua para sentir o burburinho correndo entre as casas, saltando de boca em boca como faísca em palha seca.
No bar, um grupo de homens discutia em tom exaltado.
— Faz muitos anos que não existem mais lobos por esses lados! — dizia um deles, apoiando os cotovelos na mesa de madeira. — Extintos, eu digo!
Outro retrucava, com a testa franzida:
— Extintos coisa nenhuma. Eu ouvi os uivos, juro pela alma da minha mãe.
Do lado de fora, uma mulher que acabava de comprar pão se intrometeu na conversa, balançando a cabeça.
— Eu também ouvi. Aquilo não era vento nem cão vadio. Era lobo, com certeza.
Aquelas palavras gelaram minha espinha. Eu andava ao lado de Maeve, que parecia mais interessada em ajeitar a cesta de flores que carregava do que em dar ouvidos às vozes apavoradas.
— Maeve… — murmurei, engolindo em seco. — Eu também ouvi. Não dormi a noite toda. O som parecia estar na minha janela.
Ela arregalou os olhos, surpresa.
— Que horror! — exclamou. — Eu dormi como uma pedra, não ouvi nada.
— Meu pai disse que era bobagem, imaginação minha. — Suspirei. — Mas juro, Maeve, era real.
Ela balançou a cabeça, com aquele jeito prático que sempre teve.
— Esquece isso, talvez fosse um cachorro.
— Se essa noite eu escutar de novo, não vou ficar tremendo dentro do quarto. — A decisão escapou dos meus lábios antes que eu pudesse medir as consequências. — Eu vou sair e ver o que é.
Maeve quase deixou a cesta cair.
— Está doida? E se for lobo mesmo? Ele pode te atacar, te despedaçar!
Cruzei os braços, nervosa. — O que não posso é esperar deitada, com medo, e o lobo entrar no meu quarto. Se for pra me atacar, que seja de frente.
Maeve revirou os olhos, murmurando algo sobre a minha teimosia, mas não respondeu.
O dia correu arrastado. A cada esquina, alguém comentava sobre os uivos. A cada palavra, meu coração parecia querer saltar do peito.
À tarde, enquanto tirava água do poço, senti uma presença às minhas costas. Antes que pudesse me virar, ouvi uma voz grave, baixa, que fez meu corpo estremecer.
— Com licença, senhorita.
Olhei rápido, e lá estava ele. Adrian. O estranho que não saía dos meus pensamentos desde o primeiro encontro. Sua figura imponente parecia ainda maior à luz do sol.
— Me desculpe, mas… — ele hesitou, os olhos escuros fixos em mim. — Sua beleza me fascina.
O balde quase escorregou das minhas mãos. Senti o calor subir ao rosto e desviei o olhar, o coração descompassado. Ele não podia falar assim. Não comigo.
— O senhor não devia se aproximar quando eu estou sozinha. — Murmurei, firme, tentando esconder o tremor da voz. — Meu pai não gostaria.
Vi a sombra de um sorriso breve nos lábios dele, mas logo recuou, sério.
— Perdoe-me. Não foi minha intenção causar desconforto.
E então se afastou, deixando-me ali, com a respiração entrecortada e a alma em chamas.
A noite caiu pesada. O vento trouxe consigo um silêncio estranho, como se até os insetos tivessem se calado. Meu pai ainda não havia voltado — devia estar na venda, como sempre, bebendo até tarde.
Deitada na cama, agarrei o travesseiro, mas não conseguia dormir. Um barulho no quintal me fez prender a respiração. Não era o vento. Não era imaginação. Era real.
Levantei, os pés frios no chão de madeira. Cada passo até a porta parecia ecoar como um trovão. Empurrei-a devagar, o coração acelerado, e a escuridão do quintal se abriu diante de mim.
Ao longe, um vulto corria em direção à floresta. Sem pensar, segui. As pernas tremiam, mas a necessidade de descobrir a verdade era mais forte que o medo.
De repente, o vulto tropeçou e caiu. Meu peito apertou. Corri até ele.
— Adrian! — exclamei, quando o reconheci. Estava ferido, o rosto contraído de dor, a respiração pesada.
— Vá embora… — murmurou, a voz quase um grunhido. — Saia daqui, corra!
Ajoelhei ao lado dele, ignorando o medo. — Não posso te deixar assim. Vou te levar para a garagem da minha casa.
Ele tentou se erguer, mas logo caiu de novo. O suor brilhava em sua testa, e seus olhos ardiam com algo que não era apenas dor.
— Não! — rosnou, a voz mais gutural. — Você não entende… é perigoso. Se afaste!
— Perigoso? — sussurrei, o coração disparado. — O que está acontecendo?
Foi então que ele soltou um rosnado baixo, profundo, que gelou meu sangue. Recuo instintivamente, assustada.
— O que é isso? — minha voz tremia.
— Some daqui! — ele gritou, os olhos escurecendo de uma forma impossível, animalesca.
E antes que eu pudesse reagir, a lua surgiu plena entre as árvores. Um clarão prateado iluminou a clareira, e eu vi. Meu Deus, eu vi.
O corpo de Adrian começou a mudar diante de mim. A pele se esticava, os músculos se contorciam, e pelos cresciam rapidamente, cobrindo cada parte dele. Seus ossos estalavam como madeira quebrando, e um uivo lancinante ecoou, rasgando a noite.
Meus olhos se encheram de lágrimas. O medo tomou conta de cada parte do meu corpo, mas eu não conseguia me mover. Estava tomada pelo medo e por algo a mais que eu não conseguia entender. Talvez pena.
— Corra! — ele rugiu, a voz já tomada pelo monstro que emergia. — Corra, Elara, e não olhe para trás!
O mundo girava, confuso, surreal. As pernas finalmente responderam, e eu corri. Corri como nunca, o coração prestes a explodir. Atravessei o quintal, empurrei a porta e a tranquei às pressas, as mãos tremendo. O coração acelerado.
Encostei as costas na madeira fria e deslizei até o chão. As lágrimas caíam sem controle, molhando meu rosto. o que era aquilo que acabara de ver? Aquilo não podia ser real.
Adrian. O homem que mexia com meu coração. O estranho que parecia destinado a mim. O homem por quem eu estava enfeitiçada. Ele não era homem. Não totalmente. O que ele era? Uma fera? Um monstro? A minha cabeça parecia que ia explodir com tanta informação ou por falta dela. O que era aquilo, o que tinha acabado de acontecer/ Essas perguntas não saíam da minha mente.
Lá fora, a lua brilhava impiedosa, e eu soluçava em silêncio, perdida entre o medo, a confusão e a dor. Ao longe ainda ouvia os uivos, cada vez mais distantes, até não mais ouvir.