Adrian
A floresta ainda pulsava dentro de mim quando atravessei os limites do território da alcatéia. A lua cheia já havia recuado no horizonte, mas a energia dela ainda queimava em minhas veias como fogo líquido. Meus passos eram pesados, não pelo cansaço, mas pela consciência do que eu havia feito. Eu sabia que Cael estaria me esperando, e sabia também que não seria fácil encarar o olhar de reprovação que ele me lançaria.
E eu não estava errado. Assim que atravessei a clareira principal, onde os lobos se reuniam depois das caçadas, lá estava ele, firme, de braços cruzados, a expressão carregada de uma mistura de preocupação e raiva. Seus olhos, sempre atentos, brilharam ao me ver, e antes mesmo de eu dizer qualquer coisa, sua voz grave ecoou no ar gelado da madrugada.
— Onde você esteve, Adrian? — perguntou, sem rodeios. — A lua cheia já havia nascido quando você não estava aqui. Todos esperavam por você.
Engoli em seco, sabendo que não poderia inventar desculpas. Cael era meu braço direito, meu amigo de infância, mas também o mais leal às tradições da alcatéia. Não havia mentira que pudesse atravessar aquele olhar penetrante.
— Eu… — comecei, hesitante, mas logo firmei a voz. — Saí. Pretendia voltar antes da lua surgir, mas… quando percebi, já estava na floresta, e a lua me encontrou lá.
Cael estreitou os olhos, a mandíbula cerrada. — Você sabe o que isso significa. Sabe o perigo que correu, Adrian.
— Eu sei. — Respirei fundo, tentando controlar a lembrança da sensação que ainda me queimava por dentro. — Mas havia algo… algo que me puxava. Não consegui resistir.
Ele descruzou os braços, dando um passo em minha direção. A lua cheia ainda refletia em sua pele clara, e seus olhos brilhavam como aço.
— Não me diga que foi até a vila. — Sua voz soou como uma ordem, não como uma pergunta.
Abaixei o olhar por um instante, mas não havia sentido em negar.
— Fui.
O silêncio que seguiu foi pesado, quase palpável. Cael passou a mão pelos cabelos, um gesto que denunciava sua exasperação.
— Você perdeu o juízo? — exclamou, sua voz ecoando pela clareira. — Na lua cheia, Adrian? É proibido! Você, de todos, deveria lembrar disso. Você é o Alpha! É quem nos guia, quem mantém as regras vivas!
Levantei a cabeça, fitando-o com firmeza. — Eu não me esqueci de quem sou, Cael. Eu sei cada regra, cada lei. Carrego todas elas comigo desde que assumi a liderança desta alcatéia.
— Então por que diabos arriscou tudo? — Seu tom estava carregado de incredulidade. — E se alguém aparecesse no seu caminho? E se você tivesse perdido o controle e atacado um humano?
As palavras dele me atingiram como flechas afiadas. Eu sabia que ele tinha razão. O risco fora imenso. Uma vez que a lua nos domina, não há certezas, apenas instinto. E, no entanto, nada disso importava diante da verdade que ardia em meu peito.
— Eu não ataquei ninguém. — Minha voz saiu mais baixa, mas carregada de convicção. — Mas encontrei alguém.
Cael estreitou os olhos, estudando minha expressão. — O quê?
Engoli em seco, sentindo o peso das palavras antes de pronunciá-las. — Ela.
— Ela quem? — Sua voz carregava desconfiança.
Dei um passo para trás, inspirando profundamente, como se o simples ato de falar fosse um risco. — A mulher. Aquela que me atraiu. Ela é a razão de eu não ter conseguido ficar aqui. Eu a vi de longe… e não consigo tirá-la da minha mente.
Cael ficou em silêncio por alguns segundos, como se processasse a informação. Seus olhos se arregalaram ligeiramente. — Você está me dizendo que…?
— Sim. — O interceptei antes que ele concluísse. — Ela é a minha luna. A minha predestinada.
Um silêncio pesado caiu entre nós. O vento da madrugada passou, gelado, carregando o som distante de folhas se mexendo. Cael me encarava como se eu tivesse acabado de pronunciar a maior heresia da nossa história.
— Você enlouqueceu. — Sua voz era um sussurro, quase uma acusação. — Como pode dizer isso? Como pode acreditar nisso? Ela é humana, Adrian. Humana!
— Eu não sei explicar. — A minha voz tremeu, mas não de incerteza, e sim da intensidade que queimava dentro de mim. — Mas eu tenho certeza. Quando a vi, quando senti o cheiro dela, quando nossos olhos se encontraram… algo em mim despertou. Algo que nunca senti antes.
Cael balançou a cabeça, incrédulo. — Você sabe que isso é impossível. Predestinadas não nascem entre humanos. Isso vai contra tudo que os anciões nos ensinaram.
— Então que os anciões expliquem, se forem capazes. — Respondi, com firmeza. — Eu não escolhi isso, Cael. Ela me atrai, me enfeitiça. É como se o próprio destino tivesse escrito isso em minhas veias.
Ele cerrou os punhos, respirando fundo. — Você não pode falar assim, Adrian. E se os mais velhos ouvirem? Se os anciões descobrirem que você anda quebrando o pacto, ainda mais em noites de lua cheia? Eles não vão aceitar. Nem mesmo por você ser Alpha.
— Eu sei. — Admiti, sentindo o peso da responsabilidade. — Sei que corri riscos. Sei o que poderia ter acontecido. Mas, Cael… — minha voz se quebrou, suavizando-se. — Quando eu a vi pela primeira vez, tive certeza de que era ela. Não importa se é humana, não importa o que dizem os livros ou as tradições. Eu sinto isso no fundo da alma.
Cael fechou os olhos por um instante, como se buscasse paciência. — Adrian… e se você estiver errado? E se for apenas um desejo, um impulso da lua?
— Não é. — Respondi, firme. — Você me conhece. Sabe que não me deixaria enganar tão facilmente. Isso é diferente. Eu nunca senti nada parecido.
Ele suspirou, exasperado. — E o que pretende fazer? Vai simplesmente desobedecer aos anciões? Vai arriscar tudo? Nossa alcatéia, nosso pacto com os mais velhos, a paz que mantemos há gerações?
— Não quero arriscar nada disso. — Minha voz saiu quase como um rugido contido. — Mas não posso ignorar o que sinto. Não posso simplesmente virar as costas e fingir que ela não existe.
Cael me olhou longamente, como se buscasse alguma fraqueza em minhas palavras. Mas tudo o que encontrou foi a chama incontrolável que ardia em mim.
— Você é o Alpha. — Disse, por fim, sua voz mais calma, mas ainda carregada de dureza. — E, como Alpha, precisa escolher entre o dever e o desejo. Se os anciões souberem, não terão piedade. Nem mesmo com você.
Eu sabia que ele tinha razão. A tradição era implacável. Mas o que ele não entendia — o que talvez ninguém pudesse entender — é que não se tratava de desejo. Se tratava de destino.
Levantei o rosto para o céu, observando os últimos resquícios da lua cheia desaparecendo atrás das árvores. Ainda podia ouvir, dentro de mim, o eco do chamado que me levara até ela. E sabia, com uma certeza inquebrantável, que não havia como voltar atrás.
— Dever ou desejo? — murmurei, mais para mim do que para Cael. — E se, desta vez, os dois forem a mesma coisa?
O silêncio que seguiu foi denso, quase sufocante. Cael não respondeu. Apenas me olhou, como se estivesse diante de um homem que, aos poucos, se distanciava do mundo que conhecia.
E talvez fosse verdade. Porque, naquele momento, mais do que Alpha, mais do que líder, eu era apenas um lobo marcado pelo destino. E o nome desse destino era Elara.